CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXXXII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXXXII

O Neo-Pelagianismo – II

Deixámos a interrogação sobre esta deriva teológica, que tanto se congraça no mundo contemporâneo, globalizado e imediatista, de sociedade que preza mais a informação do que o conhecimento, que se encaminha para o consumo e para o mercado, não tanto já para o homem e para a sua razão e sentido de existência e de vida. Mas o que é e como se manifesta, onde está o Neo-Pelagianismo no mundo de hoje?

O Neo-Pelagianismo é considerado um movimento fora da ortodoxia (no sentido do caminho correcto e de acordo com a doutrina da Igreja) católica, até mesmo cristã. Assim é porque, derivando do Pelagianismo, realça as capacidades do homem, em detrimento da Graça de Deus, que relativiza. Reveste-se de uma roupagem mais contemporânea, embora mantenha a culpabilidade exclusiva de Adão em relação ao Pecado Original, livrando a sua descendência da culpa. Daqui ao livre arbítrio é um passo rápido, dotando o homem de poder escolher, por si mesmo, entre o bem e o mal. Sem precisar da Graça de Deus.

UM ANACRONISMO?

As ideias de Pelágio foram condenadas nos Concílios de Cartago (416) e de Éfeso (431). Conheceram todavia algumas reformulações por parte de alguns seguidores, ressurgindo em novas correntes que eram tidas como semi-pelagianas. Estas procuravam chegar a um ponto de contacto entre o Pelagianismo condenado pela Igreja e o rigor agostiniano que acusavam de augurar uma postura muito pessimista da condição humana como consequência do pecado original, questionando por um lado o valor ou eficácia do livre arbítrio e por outro o exagero do alcance da Graça Divina. A posição híbrida dos semi-pelagianos, na ressaca das condenações conciliares acima enunciadas, pautava-se por um reforço da capacidade do homem para responder por si mesmo à Graça de Deus, não a negando contudo, mas defendendo uma participação mais activa e meritória do homem com o instrumento do livre arbítrio, que conferia maior autonomia e capacidades. Mas também esta corrente acabaria por ser combatida e depois mesmo condenada, no Concílio de Orange, em 529, cerca de um século depois da condenação de Éfeso. Eis o exemplo de como uma heresia condenada em sede de Concílio ou pela Cúria Romana pode renascer ou ressurgir de forma metamorfoseada ou renovada, mas na essência mantendo-se o ponto nevrálgico de dissidência em relação à ortodoxia.

Mas será o Neo-Pelagianismo dos tempos de hoje um anacronismo, ou seja, o reavivar de algo que não tem sentido hoje porque é do passado e foi já condenado e extirpado? Podíamos referir que não, se pensarmos nos sucessivos alertas que o Papa Francisco tem feito relativamente aos seus riscos e à forma de elixir mágico que parece configurar para alguns. A designação de Neo-Pelagianismo indica precisamente o risco de que se reveste, pois existe de novo algo que foi condenado e aparece de forma subliminar, velada ou disfarçada, encoberta, induzindo em erro os que a “descobrem”.

O super-homem capaz de se salvar sozinho, contando apenas consigo e as suas capacidades, forças e o poder próprio, é a figura que emerge na adesão a uma corrente como a neo-pelagiana, pois demite-se o homem de todo o auxílio ou necessidade da Graça Divina. O esforço e auto-capacitação tudo conseguem, Deus e a Sua Graça de que servem afinal, neste contexto? O indivíduo é um ser radicalmente autónomo, sem dependência alguma em relação a nada que esteja ou provenha de fora dele. Não se percebe se Deus provém do seu interior ou de fora, mas se a Sua Graça, algo interior espiritual, é recusada, então Deus passou a ser uma força exógena desnecessária. O profundo do ser tornou-se um buraco escuro e fundo. E a salvação está ao alcance do homem. Sim, mas pelo homem e no homem, segundo esta corrente. Só as forças do indivíduo e as estruturas humanas, exclusivamente humanas, são capazes de salvar o homem. O Neo-Pelagianismo aniquila o espírito de Deus, poder-se-ia dizer.

O Evangelho passou a ser, para os neo-pelagianos, um mero código “ético”, voluntarista, ou um moralismo, quando muito. Fica a ser apenas um manancial de exemplos e de parábolas edificantes, de onde se podem extrair propostas de valores morais, de acordo com os ensinamentos de Jesus, como verdade, liberdade, justiça, unidade, paz, equidade, entre outros. Cristo, fonte do Evangelho, deixa de ser em Si mesmo a Verdade, ou o caminho para a liberdade, como o Pai através d’Ele ensina.

A Igreja, como Corpo, a Eucaristia, os Sacramentos, a Liturgia e o Culto no seu todo deixam de ter importância e valor, para esta corrente. Para os neo-pelagianos deixam de ser a chave da vida e do quotidiano, e diminuem a sua importância na evangelização e na construção de um mundo melhor. Em vez da fé, em vez da verdade dos Evangelhos, de Cristo como fonte de esperança, os neo-pelagianos, na senda do mundo globalizado, relegam esse papel para outras manifestações humanas mais mundanas, como concertos, actos públicos, conferências, mesmo livros. Não deixam de ter o seu valor, nem perdem a sua importância, mas provavelmente não poderão substituir, no plano da fé, a fonte de salvação e os instrumentos de evangelização que são os Evangelhos como exemplo de vida e de fundamento em Cristo.

Para muitos neo-pelagianos, a santidade é quase impossível, ou a santificação, pois desproviu-se de espiritualidade e de graça, de valores evangélicos, algo que só pode existir – a Fé – com esses elementos. Leis, normas passam a ser os valores, num quadro de um “eticismo” sem espiritualidade. As devoções e o sentimento substituem-se por sentimentalismos ou manifestações com umas matizes de religião, mas mais de uma “religião” de tipo pessoal. Na sua simbiose com a globalização, esta corrente neo-pelagiana desprove o homem da acção divina, da espiritualidade estribada na fé, que são quase como elementos acessórios ou anexos, de menor importância, no esforço de salvação.

Muitos não sabem porém que submergiram nesta corrente, ou não têm consciência de tal. A desvalorização da Graça é evidente no mundo de hoje, paralela precisamente à afirmação do homem por si mesmo, das suas capacidades. Um homem que não quer depender de Deus, como se a tónica estivesse aí, ou fosse sequer a raiz de todos os males e problemas do mundo e da Igreja. Para muitos negar a Graça é apostasia. Sem ser tão radical em relação aos neo-pelagianos, podemos mais ligar essa tendência àquilo que é a tentativa do homem em sobreviver à globalização, afinal devoradora de individualismos e de pessoas. Enveredar por algo fácil como negar pode não ser o caminho, mas antes a desorientação, como refere tantas vezes o Papa Francisco.

Vítor Teixeira 

 Universidade Católica Portuguesa

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