Deus lê sempre as notícias…
“A fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar”. In Prefácio – Documento sobre a Fraternidade Humana em Prol da Paz Mundial e da Convivência Comum.
Primeiro, um olhar para o interior da Igreja. A recente carta aberta de um prelado católico ao Presidente do seu país, em plena campanha eleitoral, endossando-o como o garante da salvação do mundo contra uma temível conspiração que faz perigar toda a Humanidade, é o exemplo mais acabado da confusão lamentável de registos entre o religioso e o político. Desde logo, o que mais me admira é a profusão de mensagens de tantos iluminados!
A crítica acerba e persistente do mesmo prelado ao Santo Padre, por de algum modo estar conivente com tal conspiração, exprime todo o mal que pode fazer quem deveria dar prioridade máxima à unidade da Igreja sobre as tentações do protagonismo individual, mesmo e sobretudo no contexto eclesial.
Como considero o Papa Francisco, para além do grande líder espiritual do Cristianismo do nosso tempo, na esteira de São João Paulo II, uma figura incontornável de grande humanista, as palavras que o criticam ferem-me também a mim. E certamente a milhares e milhares de cristãos.
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Mas num registo bem mais preocupante, recentemente, como se sabe, tal desvario concretizou-se da forma mais trágica, com os crimes perpetrados, no interior da basílica de Nice, por um jovem muçulmano de origem tunisina, chegado recentemente a França.
Em pleno Século XXI, num país “civilizadíssimo”(?), são praticados crimes que pareceriam doutro tempo, ou em todo o caso doutros lugares.
Sobre tudo isto medito nesta crónica, mas permitam-me que desde logo explique o seu título: “Deus lê sempre as notícias…”.
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De acordo com a doutrina cristã, não é propriamente original dizer-se que Deus – e Jesus que O encarna – partilha as nossas vidas, em quotidianos de amor e de cumplicidade que fazem da presença do Divino uma constante no nosso dia-a-dia. Foi este sentir Deus próximo de nós que constituiu uma primeira sugestão para o título, algo ousado, desta crónica. Releve-se-me pois a boa intenção, mais do que a ousadia.
Mas tal título foi-me também inspirado pelos acontecimentos mais recentes, um pouco por toda a parte, em que a religião (e não apenas a nossa) é usada, de forma diversa, mas sempre desvirtuando os seus princípios, para fins que não são os seus.
Religião, para voltarmos à sua origem etimológica, é a forma de o homem se re-ligar ao Divino, num diálogo fundamental sobre o sentido da vida.
Num tempo em que em muitas partes do mundo, sobretudo o mais rico, tal diálogo e o próprio Deus “são postos na prateleira”, em tantas ocasiões da vida contemporânea, falar do Divino e do que Lhe está associado, com tanta insistência, em momentos específicos, dá motivos para suspeitar.
E quando nesses momentos se regressa apressadamente à religião, não é necessariamente no interior dos templos, nem pelos oradores mais qualificados e em ambiente de respeitoso recolhimento. Antes, por exemplo, em comícios improvisados, ao sabor de campanhas eleitorais frenéticas, onde se invoca o Altíssimo por razões que se conhecem, como condicionar comportamentos e suscitar lealdades que de religioso nada têm.
Ora, Deus sabe disso… Ele também lê as notícias! – acrescentaria eu, com a minha imaginação literária.
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Tal desvario pseudo-religioso tem várias consequências nefastas. Certos grupos acaparam-se da verdade religiosa… e a VERDADE passa a ser deles. A VERDADE são… ELES. E arrebanham os crentes, e dizem a estes como devem pensar…, e sobretudo como devem votar!
Da pura manipulação política do religioso nos sistemas democráticos, aos actos sangrentos de vingança mais cruel, vindos doutros contextos culturais, mas de que a Europa tem sido o alvo, vai um passo. Um grande passo. Mas só diferindo no grau, não na natureza. Basta ver como têm sido invadidas por ondas de violência as transições políticas “democráticas” em muitos países para se concluir o quão perto estão um do outro os dois fenómenos.
Desvalorizar o sagrado
Como se viu recentemente nos acontecimentos de França, faz parte também dessa confusão entre político e religioso a negação do sagrado (o direito à blasfémia) para defesa de valores que se lhe opõem. Andariam melhor avisados os líderes políticos que não ultrapassassem a linha de respeito dos outros, insistindo no discurso das convergências onde se sabe serem múltiplas as fracturas. O papel do líder não é acicatar ódios, a pretexto de defender valores, havendo meios mais subtis para preservar princípios fundamentais em sociedades plurais.
A reacção terrorista que tal ocasiona, como aconteceu em solo francês, em que a religião muçulmana é usada ilegitimamente como arma de combate que destrói, é resposta intolerável e completamente inaceitável a um discurso, o de Macron, mas que, tal como foi formulado, dividiu e não congregou, confundindo os moderados em vez de circunscrever os extremistas, e falhando por isso a sua missão de servir de ponte que une, estimulando o (re)encontro.
Deus sabe de tudo isso. Deus lê sempre as notícias!
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Já noutro país ocidental, dos mais relevantes, o culto abusivo da personalidade de certo político, quase o divinizando, num círculo restrito, por se lhe atribuir/relegitimar destino e mandato pré-messiânicos, é a outra componente de uma mesma e única estratégia: conduzir os cidadãos a comportamentos sociais e às escolhas eleitorais que mais servem interesses políticos pouco confessáveis.
“Os católicos votam em X!”, leu-se na propaganda. E insistiu-se na TV: “Os católicos não votam em Z!”.
Como tirar a religião, todas as religiões, desta perigosa armadilha, é naturalmente a grande questão a aguardar, há muito, por resposta definitiva.
Reconciliação… reconciliação…
O Papa Francisco deu a resposta, associando à sua iniciativa líderes de outras religiões e mormente o Grande Imã de Al-Azhar, a autoridade máxima do Islão sunita.
Medite-se no que diz a Declaração de Abu Dhabi: “Nós, embora reconhecendo os passos positivos que a nossa civilização moderna tem feito (…), ressaltamos que juntamente com tais progressos históricos (…) se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a actividade internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de responsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar uma sensação geral de frustração, solidão e desespero, levando muitos a cair na voragem do extremismo ateu e agnóstico ou então no integrismo religioso, no extremismo e no fundamentalismo cego (…)”.
E atente-se particularmente nas finalidades da Declaração: “almejamos que esta Declaração: seja um convite à reconciliação e à fraternidade entre todos os crentes, mais ainda, entre os crentes e os não-crentes, e entre todas as pessoas de boa vontade; seja um apelo a toda a consciência viva, que repudia a violência aberrante e o extremismo cego; um apelo a quem ama os valores da tolerância e da fraternidade, promovidos e encorajados pelas religiões; (…) seja um símbolo do abraço entre o Oriente e o Ocidente, entre o Norte e o Sul e entre todos aqueles que acreditam que Deus nos criou para nos conhecermos, cooperarmos entre nós e vivermos como irmãos que se amam”.
Deus, que lê e sabe tudo, gostou certamente muito de tal documento. Talvez alguns líderes políticos devessem lê-lo e incorporá-lo no seu agir político.
Carlos Frota