O Racionalismo como heresia

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CIV

O Racionalismo como heresia

O Racionalismo é considerado como uma heresia desde o século XIX. Em suma, afirma que a Razão é o único arbítrio entre o bem e o mal, entre o verdadeiro e o falso sem necessidade de Deus. Também refere que a Fé Cristã danifica a perfeição do Homem e que as profecias e os milagres são pura ficção, tal como considera que Jesus é um mito. A Igreja defende que nem tudo pode ser explicado à luz da Razão, havendo temas que só se podem entender e explicar à luz da Fé. O Racionalismo, por seu lado, afirma que tudo o que não pode ser explicado pela Razão, não existe!

O Racionalismo é uma corrente filosófica que se desenvolveu na Europa continental durante os séculos XVII e XVIII, formulada na origem por René Descartes. A posição da Igreja frente ao Racionalismo foi a de que a Fé e a Razão não se excluem. No entanto, esta última pode questionar os princípios dogmáticos da Igreja. A razão, claro, é a “figura” central do Racionalismo.

A ideia de que todas as coisas que verdadeiramente existem são aquelas que se podem explicar mediante o uso da razão é o princípio básico desta corrente filosófica, que até aqui não é um problema para a Igreja, de certo modo. Todavia, passa a ser uma heresia aos olhos do Cristianismo pelo facto de que o Racionalismo apresenta a ideia de que tudo o que verdadeiramente existe deve ser demonstrado e comprovado mediante o uso da razão, apenas e sem mais. Aqui aparece a colisão, ou contradição, entre a razão e os dogmas de fé da Igreja Católica.

Para a Igreja, nem tudo deve estar explicado por meio da racionalidade, pois coisas há, ou em vários momentos, que podem ser explicadas à luz da fé. E é em um desses momentos, quando a racionalidade se converte numa heresia, que se dá o choque nas crenças e nas explicações dos factos. É um debate intemporal.

TUDO É RAZÃO?

O Racionalismo afirma o domínio supremo e absoluto da razão humana em todos os campos, submetendo ao seu controlo todos os factos e toda a verdade, sem excluir o mundo sobrenatural e a mesma autoridade de Deus. É o naturalismo aplicado à inteligência e indirectamente à vontade. É a negação da fé sobrenatural (o racionalismo mais “rude”), ou a primazia da razão sobre a dita fé (o racionalismo moderado).

Esta corrente vê as coisas com critérios meramente humanos, de forma exclusiva. Só a Ciência e a experiência iluminam o caminho da razão, nunca a luz da Revelação ou o Plano de Deus da Salvação. O Racionalismo nega a Divindade de Cristo e da Igreja, o valor sobrenatural dos milagres, a Inspiração da Sagrada Escritura e a Infalibilidade do Romano Pontífice “ex cathedra”. Numa só palavra, nega toda a verdade revelada, pelo facto de superar as forças da inteligência humana. Uma forma de racionalismo é o intelectualismo: fica-se pela doutrina, faltando a caridade. Não basta ter razão, há que ter amor. Aqui está uma das falências do Racionalismo.

Em Teologia entende-se por “racionalismo” a concepção segundo a qual a adesão à fé assenta no conhecimento racional e a verdade da fé pode-se demonstrar com argumentos de razão. Mas a credibilidade da fé não se pode, porém, demonstrar positivamente. O Concílio Vaticano I condenou de forma reiterada, recorde-se, esta definição de Racionalismo.

Sob o veredicto do Racionalismo, caiu também a opinião de que a auto-comunicação de Deus, verificada historicamente, se podia demonstrar com a palavra humana. Contudo, a única demonstrável, afinal, é a existência de uma mensagem que afirma em si mesma que é a Palavra de Deus. Ainda que esta demonstrável não se possa refutar com argumentos de razão, a verdade desta pretensão só se pode conhecer com a fé. A justificação da fé perante a razão supõe que se pode demostrar, antes da adesão à fé, que na distinção entre fé e descrença esta última é arbitrária. E por isso, justamente, não se pode justificar. Mas com tal não se demonstra o carácter não arbitrário da adesão da fé. Apenas se pode provar que não está justificada a negação da arbitrariedade em relação à fé, e sim no que toca à descrença.

O conhecimento da razão e o conhecimento da fé não podem opor-se, ainda que frequentemente estejam numa relação de conflito. O conhecimento da razão refere-se ao conhecimento geral da realidade, que se pode adquirir independentemente da fé. O conhecimento da fé refere-se a um conhecimento para o qual há que recorrer à auto-comunicação de Deus. O conhecimento da razão revela um relacionamento negativo diante do conhecimento da fé. Não pode nem demonstrar a fé, nem torná-la compreensível. Por isso, a razão não tem, no que respeita à fé, uma função de apoio ou sustentação, talvez desempenhe mais a função de filtro.

A razão crítica preserva a fé da superstição, e é essa razão que atrai a fé. A fé põe em causa a independência da razão, afirmam alguns, a ela se opondo quando esta ataca as suas próprias leis (as da fé). O Racionalismo, um dos pilares do modernismo, não conseguiu resolver as dúvidas da fé, ou as da Ciência, até aos dias de hoje, existindo mais uma crença nos métodos e processos, ou nos objectivos teóricos, do que nos resultados.

Muitos foram os teólogos que atacaram o Racionalismo doentio e radical, ou os seus falsos pressupostos. Um deles foi o cardeal Newman (1801-1890), talvez o autor da mais veemente resposta cristã ao Racionalismo. Deixou-nos um discurso memorável, nesse sentido, proferido em 11 de Dezembro de 1831, na Universidade de Oxford, intitulado “The Usurpation of Raison”, isto é, a usurpação ou a prevaricação da razão. Neste título alguns vislumbram a definição do que é o Racionalismo. Por usurpação da razão – dizia o cardeal – entenda-se “certo abuso generalizado dessa faculdade quando se fala de religião sem um conhecimento íntimo ou sem o respeito devido aos princípios fundamentais desta. Essa ‘razão’ é chamada ‘sabedoria do mundo’ nas Escrituras e é a compreensão de religião dos que têm a mentalidade secularista e se baseiam em máximas do mundo, que lhes são intrinsecamente alheias”.

Noutro dos seus sermões na Universidade, “Fé e Razão comparadas”, Newman ilustra por que a razão não pode ser o juiz supremo em matéria de religião e de fé, com a analogia da consciência: “Ninguém dirá que a consciência se opõe à razão, ou que os seus preceitos não podem ser apresentados em forma de argumento; no entanto, quem, a partir disso, argumentará que a consciência não é um princípio original, mas que, para actuar, precisa atender o resultado de um processo lógico-racional? A razão analisa os fundamentos e os motivos da acção, sem ser ela mesma um destes motivos. Quando se diz que o Evangelho exige uma fé racional, pretende-se dizer somente que a fé concorda com a recta razão em abstracto, mas não que seja realmente seu resultado”. Melhor explicação é difícil do que esta de Newman….

Vítor Teixeira 

 Universidade Católica Portuguesa

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