As estórias da fortaleza
Feitas de pedra e coral, as rasas muralhas da velha fortaleza apenas junto à entrada atingem, quando muito, um metro de altura. Sabe-se que o canto nordeste acolheu outrora uma torre de vigia e, no centro do recinto, é ainda visível os alicerces da pequena casa de madeira e telhado de colmo destinada aos oficiais. A norte e a leste, virados ao mar aberto, no local onde estariam implantados os canhões defensivos repousam hoje réplicas bastante ingénuas a lembrar-nos artefactos de um parque temático. Qual o paradeiro das peças originais? Agrada-me imenso esta coisa de os símbolos bélicos de outrora – e o Benteng Portugis não é caso único, longe disso – terem sido transmutados em refúgios de paz e recolhimento.
Esteve durante séculos, o dito baluarte, ao sabor dos caprichos da natureza. Tempo bastante para que no seu interior crescesse arvoredo de alongadas raízes que ainda hoje dá sombra aos visitantes, proporcionando-lhes, assim o desejem, tranquilas merendas e salutar convívio familiar. O sítio seria retirado do regaço da Gaia-mãe durante a Segunda Grande Guerra pelos soldados nipónicos, que dele fizeram atalaia. Como era do seu “modus operandi” estes não hesitaram em recrutar à força, nas aldeias vizinhas, gente para desbastar o matagal e ampliar a estrada até ao topo da colina. Consta até que terá sido cavada uma passagem subterrânea para facilitar o acesso à praia aos militares graduados. Dessa passagem não há quaisquer vestígios, embora existam, isso sim, duas íngremes escadarias e, no sopé da colina, paredes da primeira defesa com o respectivo orifício destinado às metralhadoras. São agora predilecto poiso para fotos de recordação futura.
Romusha (“jornaleiro”, em Japonês) era o nome dado aos trabalhadores forçados, um total de dez milhões em toda a Java. Desses, cerca de 270 mil seriam enviados para outras paragens sob o domínio japonês no Sudeste Asiático, e somente 52 mil conheceriam o repatriamento; ou seja, uma taxa de mortalidade de oitenta por cento.
À falta de documentação fidedigna, o “forte português” permanece envolto em grande mistério. Um dos aldeões, de sua graça Subekti Sahlan, numa louvável tentativa de desvendar alguns dos seus segredos recorrendo à tradição oral, “especialmente os idosos com histórias sobre o forte e seus arredores”, escreveu um artigo intitulado “O Mistério do Forte Português”. Sahlan não tem dúvidas quanto aos edificadores “que dessa forma melhor defendiam os seus interesses”, numa feroz competição comercial com as demais nações, “nomeadamente os britânicos e os holandeses”. Além disso, servia o fortim de dissuasor junto dos piratas que infestavam os mares de Java, “especialmente as águas de Jepara”, perturbando a actividade mercantil.
Subekti Sahlan estima que o benteng tenha sido construído quando senhoreava Demak o sultão Hadiwijaya (ou Jaka Tingkir, como é mais conhecido), sucessor da rainha Kalinyamat, filha do sultão Trenggana. “Escrevi o artigo para que filhos e netos da gente da minha aldeia não esqueçam a história do forte português”, afirmou Subekti Sahlan. Como que a confirmar esse seu desejo, tenho o privilégio de assistir à chegada de um grupo de motociclistas, alguns dos quais envergando t-shirts com o seguinte dizer: “Basecamp KPC Portugis Jepara”. Pelos vistos, também aqui é motivo de inspiração o imaginário luso. Mas há mais. À semelhança do que acontece em tantos outros locais do alongado arquipélago não falta quem aqui se desloque na esperança de encontrar alguma das mata-birus, as afamadas “mulheres de olhos claros”, invariavelmente associadas à passagem dos portugueses por estas bandas.
Em boa verdade, esta fortaleza foi construída pelos governantes de Mataram, algures entre 1613 e 1645, com a ajuda técnica e militar dos portugueses, daí o peculiar nome. Tinha como principal missão dissuadir “o inimigo vindo do Mar de Java”, ou seja, os holandeses. Que mais do que um povo, nestes mares se apresentaram como uma empresa comercial destituída de identidade com o único objectivo de fazer dinheiro. A VOC contava com exército profissional pronto para “persuadir” reinos e monarcas a aceitarem as suas propostas comerciais. O dinheiro cunhado pela empresa não exibia símbolos da realeza, tão só as iniciais VOC. A moeda e um exército próprio eram apenas alguns dos muitos indícios da sua autonomia em relação ao país de origem, os Países Baixos. Pode-se dizer que a Companhia Holandesa das Índias Orientais foi a primeira multinacional da história, com um conselho de administração liderado por o equivalente a um CEO, que velava pelos interesses de accionistas anónimos.
A VOC estabeleceria alguns precedentes significativos no mundo dos negócios que perduram ainda hoje. Subestimando as intenções políticas dos holandeses, a classe dominante javanesa optou por pisar terreno escorregadio. Uma das facções imperiais procurou a ajuda desses comerciantes europeus, na esperança de obter vantagem na luta interna pelo poder. Mas cedo se aperceberam que tinham deixado entrar a raposa no galinheiro. Bem a tentaram expulsar, mas já era tarde demais.
Joaquim Magalhães de Castro