Os Henricianos – II
A vida de Henrique de Lausanne tornou-se conhecida sobretudo graças aos escritos de advertência do bispo de Le Mans, Hildeberto de Lavardin, que registam as deambulações na sua diocese e os desacertos doutrinários do pregador. Henrique parece que teve sempre uma oportunidade de reflectir e de se explicar, mas como muitos radicais da “fé”, optou por “seguir em frente”. Esta opção destes espíritos inquietos deve-se, normalmente, à instigação de “oportunistas” mais políticos que religiosos. Daqui à ruptura e ao choque é, normalmente, um caminho muito rápido…
O prelado de Le Mans apresenta Henrique como um pregador eremita qual novo João Baptista. Define-o numa total ruptura com o mundo, vestindo-se e alimentando-se com uma simplicidade radical. Entregou-se a uma vida de pregação contínua, relata o referido antístite cenomanense (Le Mans), mas ao contrário de pregadores como o beneditino Vital de Savigny (1050-1112), santo aliás, ou o conde Evrard II de Breteuil (morreu na abadia de Marmoutier, depois de 1105), Henrique não tentou “seduzir” a multidão para a sua doutrinação. Os seus oponentes não deixaram, todavia, de derramar todos os tipos de acusações contra Henrique: uma delas, por exemplo, foi a de que teria relações com mulheres e jovens adolescentes quando deveria permanecer casto por causa da sua condição como clérigo. Não se sabe se assim foi ou se eram as detracções típicas feitas aos hereges.
Henrique, no entanto, se não pretendia atrair as populações, não deixou de o conseguir. Através de sermões inflamados, convenceu os fiéis, mas também os clérigos que o ouviam, da concepção maligna e errada da doutrina sexual e conjugal da Igreja – recorde-se que a reforma gregoriana tinha acabado de impor aos clérigos o celibato obrigatório, que era contrário ao antigo costume, mais tolerante – quanto à importância da castidade no casamento, o dote ou outros aspectos matrimoniais. Henrique não reconhecia, recorde-se, a autoridade dos sacerdotes; rejeitava a necessidade de um mandato da Igreja para pregar, bem como recusava o baptismo infantil e negava a existência do pecado original e a sua transmissão aos descendentes de Adão. Henrique considera que a Igreja, que deve ser essencialmente espiritual, teria de renunciar a todos os sinais externos. Por outro lado, a sua “doutrina” defendia que a penitência e a pregação não deveriam ser submetidas ao clero, além de que a validade da Eucaristia depende da pureza interior do celebrante. Temos assim concepções ao nível doutrinário e de carácter social na base das acusações que lhe moveram, que levaram à sua expulsão de Le Mans, por exemplo.
PRECURSOR DA REFORMA?
Muitos vêem Henrique de Lausanne como pioneiro do movimento religioso que culminará na reforma protestante do Século XVI. A sua defesa da necessidade de tomar as Escrituras como fundamento e regra da fé, sem contemplar a Tradição (ou as tradições), é uma marca desse pioneirismo. O seu desalinhamento em relação à ortodoxia romana complementa esses sinais precursores, mas cremos que é de todo anacrónico e abusivo estar a apontar um pregador do Século XII como precursor de um movimento religioso, doutrinário e espiritual complexo, para mais sem um aparato teológico construído e publicado como o dos reformadores quinhentistas. Henrique, tenha-se em linha de conta, recusou a comparecer numa disputa (debate) teológica com São Bernardo de Claraval, que convidou o pregador itinerante para se esclarecer. A recusa demonstra uma provável insegurança e inconsistência doutrinárias, uma incapacidade de demonstrar argumentos fortes, o que pode atestar insuficiência teológica. O adversário era temível, de facto, talvez o mais dotado que se poderia encontrar, São Bernardo, monge cisterciense que tanto destilava mel como exornava um fel tão ácido e corrosivo nas suas críticas e considerações. Mas veja-se que a “importância” dada por São Bernardo atesta a força de Henrique e do seu grupo, que seria expressivo em número. Não foi São Bernardo que se referiu a Henrique neste modo: “Eles zombam de nós porque baptizamos crianças, porque oramos pelos mortos, porque procuramos a ajuda de santos [glorificados]”?
Os “hereges” eram normalmente grandes oradores, mas muitos evitaram confrontações, com a ortodoxia, como neste caso. Poderia então ter clarificado e demonstrado as suas preposições e ideias, mas evitou fazê-lo, na oportunidade que teve. Porquê?
Pouco depois, Henrique de Lausanne foi preso, levado perante o bispo de Toulouse e, provavelmente, condenado a prisão perpétua. Depois teve que enfrentar ainda as consequências da sua opção de não esclarecer pelo debate: numa carta escrita em finais de 1146, São Bernardo conclamava o povo de Toulouse a extirpar os últimos resquícios da heresia. O poder de influência deste santo cisterciense levantou ainda mais os ânimos populares contra as heresias, como a de Henrique, que já não se conseguiria livrar de ser um líder herético.
Henrique, apesar do seu destino, foi, ao que tudo indica, um grande pregador. Parece que era dotado de extraordinários poderes de persuasão e de uma grande seriedade. Embora tenha evitado a confrontação ideológica. Foi um dos que mais precocemente denunciou as orações pelos mortos (e as rendas que gerava…), a invocação dos santos, os vícios do clero, as superstições da Igreja e a licenciosidade da época, apresentando como exemplo a mais severa moral. Alguns já o têm comparado a John Knox (1514-1572), reformador escocês e fundador do Presbiteranismo, pelo mesmo carisma e ideal de fé.
Henrique fundamentou-se sempre na Bíblia, quase apenas neste Livro Sagrado. Suscitou adesões, inflamadas do povo e do baixo clero. O que espoletou, naturalmente, a desconfiança e depois a crítica do alto clero e, naturalmente, das posições mais elevadas da sociedade do seu tempo. Mas muitos ricos o viriam a apoiar, subsidiando-o, como sucedeu em Le Mans, o que pode ter sido também o clique para a sua confrontação e depois expulsão da Diocese. As suas ideias tornaram-se perigosas, principalmente para os que o seguiam: o destino de Henrique poderia assim tornar-se no destino dos seus discípulos. O mesmo sucederia até morrer, cativava a população, mas quando tudo se complicava, rumava a outra paragem. No meio disto, como momento decisivo, o debate com São Bernardo, negado…
O legado ficou, ainda que mitigado ou diluídos em muitos outros gérmenes de “heresias” ou movimentos disruptivos na Igreja medieval. Não apenas nesse período, mas durante séculos o seu nome não foi esquecido. Por exemplo, as Testemunhas de Jeová sugerem que Henrique de Lausanne pode ter sido um exemplo de cristão de uma longa linha de “genuínos cristãos ungidos” que defenderam a verdade da Bíblia através dos tempos. Não foi o único, mas deixou marcas.
Vítor Teixeira
Universidade Fernando Pessoa
LEGENDA:São Bernardo de Claraval