Cirurgiões Psíquicos das Filipinas

O poder da sugestão.

Fazem incisões no corpo humano com as pontas dos dedos. Removem tumores ou tecidos celulares mortos. Sem deixar qualquer cicatriz. Tudo, tudo com muito sangue. A ciência é incapaz de explicar o fenómeno, mas a fé das pessoas alimenta-o. São os cirurgiões-psíquicos das Filipinas. Jun Labo, “o curandeiro playboy” – hoje, doente e retirado da actividade – foi provavelmente o mais notório de todos eles.

O jeepney deixou-nos ficar ao dobrar da curva. Estava azul, o céu, mas o fumo expelido pelo escape dessa viatura tão característica no arquipélago filipino provocava náuseas. Podia imaginar os pinheiros mansos de largo porte que ainda há poucos anos povoavam as colinas de Baguio, a capital de Verão, no norte das Filipinas. Colinas que se avistam do Nagoya Inn, o quartel-general do famoso curandeiro e candidato a prefeito da cidade, Jun Labo.

Joseph Clemente e Vitorino Velasco, sentados junto ao tori de entrada do hotel, aguardavam a consulta diária de Labo desde as nove horas. «O mayor», disse Velasco, certo da vitória do curandeiro nas eleições que se avizinhavam, «não tarda a chegar». Apontando para o casarão com radar e muros com altos-relevos de figuras mitológicas nipónicas, no outro lado da Naguilian Road, acrescentou: «mora mesmo em frente». Clemente e Velasco eram dirigentes de uma cooperativa agrícola. Estavam ali para que Jun Labo exorcisasse «os maus espíritos que impedem o trabalho na cooperativa de avançar».

Em Baguio é assim. As pessoas vão aos curandeiros não só para se verem livres de moléstias corporais, mas também de mau olhados ou espíritos demoníacos. Curandeiros há-os às dúzias. Jun Labo era o mais popular entre eles. Ou melhor, Labo era aquele que mais se fazia notar.

Desde a morte, aos 42 anos, de Tony Agapoa, conhecido cirurgião-psíquico, Labo atraíra para si as luzas da ribalta destacando-se dos restantes curandeiros pelo seu modo de vida despreocupado e espalhafatoso. O perfil de Jun Labo desenquadrava-se da imagem que normalmente se tem de homens com poderes supranaturais. Fumava, bebia, gostava da vida nocturna, jogava golfe, conduzia carros desportivos e era cantor-pop nas horas de ócio. Enfim, um “bon-vivant” que soube transformar a sua profissão num espectáculo lucrativo.

 

UM ELVIS FILIPINO

«Não, não tenho tempo», foi assim que Labo, 61 anos, blusão e jeans apertadas, cigarro entre os dedos, evitou o contacto. Logo a seguir, sentou-se a um pequena mesa no corredor de entrada, pronto a atender as várias dezenas de conterrâneos que todos os dias lhe vinham expor problemas que não tinham necessariamente a haver com a saúde. «O senhor Jun pensou que vocês eram jornalistas. E ele não simpatiza muito com esse tipo de gente», desculpou-se Alonso Cruz, companheiro de infância de Labo, transformado no seu guarda-costas, já que eram escassas as perspectivas de emprego. «Jun é um homem simples. Mesmo antes de se tornar famoso era já um generoso filantropo». Cruz falava da «difamação pela parte da Imprensa e não só», a que Labo supostamente era sujeito. E resumia tudo numa palavra: Inveja. «Mas quanto mais o difamam mais ele se torna famoso». De facto, o nome de Labo ultrapassava fronteiras. Havia quem o considerasse um santo e quem o tratasse como um vulgar charlatão. O certo é que os quartos de Nagoya Inn estavam sempre cheios há já mais de vinte anos. Ocupados por anónimos, celebridades e até chefes de Estado. Numa das paredes víamos uma foto de Labo ao lado de um sorridente xeque da Arábia Saudita. Perto, uma vistosa placa do Lion’s Club, da qual o cirurgião era membro honorário.

 

CRENÇA COM TODOS

A escadaria, guardada pelo olho divino e um enorme espelho, dava acesso à cave onde Jun Labo efectuava cirurgia-psíquica. Diariamente, das nove às onze da manhã. Na sala de espera movimentavam-se japoneses e japonesas em roupão. Por entre estátuas de madeira de índios norte-americanos e uma vitrina onde estavam expostos diferentes tipos de medicina chinesa e cópias de vídeos sobre o “fenómeno Jun Labo”. Uma senhora empurrava uma cadeira de rodas com um indivíduo magríssimo que não devia ter mais de trinta anos. «Tem um cancro», segredou-nos o senhor Cruz, «é um dos muitos casos incuráveis». Os próprios curandeiros admitiam-no: nem todas as doenças podem ser curadas pela cirurgia-psíquica. Jun Labo garantia “sucesso em 80 ou 90 por cento dos casos”.

Radovan Gillar, checo, 26 anos, era guia-intérprete. Anualmente acompanhava grupos de doentes do seu país ao norte das Filipinas desde que Jun Labo curou um rapaz de dez anos, natural da Morávia, de um tumor na cabeça. «Ninguém lhe dava mais esperança», contava Gillar. «Esteve aqui em tratamento dois meses. Quando regressou a casa estava curado. Os próprios médicos checos comprovaram o facto». A história fez correr tinta na Imprensa. Desde então, a figura de Jun Labo não parou de ganhar popularidade na República Checa.

Gillar, desta vez, acompanha um grupo de trinta pessoas que ali iam ficar duas semanas. Não acreditava nos poderes do curandeiro. Sem saber porquê. «Julgo que se trata de um milagre», dizia ele. Milagre, parapsicologia ou puro ilusionismo, o certo é que Jun tinha negócio montado. Ao preço diário de cinquenta dólares por cabeça, Nagoya Inn albergava em regime de pensão completa grupos de doentes de todo o mundo. O tratamento e os medicamentos, porém, deviam ser pagos à parte. O preço mínimo para uma série de dez tratamentos rondava os 600 dólares.

 

NADA NA MÃO

Entre a sala de espera e o “bloco operatório”, a capela reunia no mesmíssimo altar divindades católicas e budistas. As duas religiões que inspiram o trabalho de Jun. As estátuas de Cristo, Buda e uma pirâmide de madeira dominavam os dois altares onde os doentes, antes ou depois do tratamento, vinham homenagear, agradecer ou pedir protecção aos deuses. Em frente aos altares, tal como nas igrejas, filas de cadeiras convidavam à oração. Mas os japoneses preferiam aproximar-se das divindades e bater com um pequeno pau na sua “concha-de-madeira” devocional enquanto recitavam mantras.

A sala de operações era constituída por três compartimentos onde Jun Labo, Yuko e o filho Nestor trabalhavam acompanhados por assistentes. Duas dezenas de homens e mulheres, semi-nus, todos estrangeiros, cuidadosamente mantidos a uns cinco metros de distância, assistiam maravilhados às “operações”. Enquanto não eram protagonistas, serviam de público. Labo chamou o primeiro paciente. Este, nu da cintura para cima, deitou-se na mesa colocado contra o nicho da parede com a estátua de Cristo e várias velas acesas. Labo, de mãos nuas, pressionou energeticamente junto ao estômago. De imediato brotou sangue em abundância. Um dos assistentes apressou-se a limpar tudo com a pequena toalha que trazia enrolada no braço, enquanto outro aproximou a bacia de plástico onde Labo colocou algo ensanguentado que ele afirmava ser tecido celular morto. A operação durou pouco mais de um minuto. Um após o outro, os pacientes passavam pela mesa como peças numa linha de montagem. Jun Labo usava mangas curtas para evitar que o acusasse de ilusionista. Nada na manga, nada na mão…

Ao publicitar a sua actividade, Jun Labo garantia “uma operação rápida, com muito sangue e sem dor”. Mas a abundância de sangue “é um mero factor psicológico. As pessoas precisam de ver sangue para acreditar. Na realidade poder-se-ia efectuar a operação sem que ele saísse do corpo”, confessava o curandeiro.

Entre aquilo que Labo conseguia extrair (ou materializar, segundo as opiniões) do corpo humano, contavam-se tumores cancerígenos, sinusites, parasitas intestinais, hemorroidas, pedaços de metal, de plástico e remoção do globo ocular para limpeza. Todos os anos milhares de estrangeiros voavam até às Filipinas para serem tratados pelo mais reputado dos curandeiros.

Às 11 horas, finda a série de operações, Labo passou pela sala de espera como um relâmpago. «O senhor Labo é um homem muito ocupado, só descansa à noite», lembrava as palavras de Alonso Cruz. Pouco depois, o seu assistente convidou-nos a entrar. Na sala de operações um massagista exercia sobre um paciente checo uma cura-magnética. «Apenas para limpeza do organismo». A isso também nós aceitamos ser sujeitos. Por simples curiosidade, e mal não nos iria fazer.

Joaquim Magalhães de Castro

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