Cidade identitária, cidade cinematográfica

Uma Macau teimosamente resistente

Ao falarmos da identidade de Macau obrigatoriamente nos viramos para o conjunto das ruínas de São Paulo, onde funcionou a primeira universidade da Ásia Oriental. Por mais brinquedos que os magnatas dos casinos engendrem, mantém-se como ex-líbris de excelência da cidade. Nas gastas escadarias de granito que conduzem à sua entrada assiste-se a um contínuo atropelar de gente. Vir a Macau e não fotografar as ruínas é como ir à Império do Meio e não ver a Grande Muralha.

Uns metros acima, na Fortaleza do Monte, canhões apontam à malha urbana que cresceu de forma caótica, onde antes era praia e mar. Olhem lá a China, à distância de um canal! Mais além, a China também, só que interrompida por uma linha de arranha-céus, bairro da Areia Preta, junto às Portas do Cerco, posto fronteiriço terrestre, provavelmente dos mais movimentados do planeta. São às centenas de milhar por dia, os que entram e saem de Macau.

Continue-se a olhar a cidade, agora ainda mais do alto, do topo da Torre de Macau. Estende-se a seus pés o delta do Rio das Pérolas, destacando-se, pelo seu desenho inconfundível, a Nobre de Carvalho, obra curricular de Edgar Cardoso. Uma ponte feita em forma de dorso de dragão, com a cauda no Hotel Lisboa e a cabeça a espreitar a Taipa, outrora duas ilhas. A sua ligação a Coloane deu origem a uma nova realidade geográfica: o COTAI. Se Macau cresce agora na perpendicular, há décadas que o faz para os lados. A área de terreno reclamado ao mar na Taipa, por exemplo, era quase tanta como a do chão original.

Imaginemo-lo, ao monsenhor Manuel Teixeira, incansável compilador das memórias lusas no Oriente, de batina e longas barbas brancas ao vento, a atravessar o dorso desse dragão de betão, como o fizera durante décadas, todos os fins de tarde. Fantasma inspirador, a juntar a tantos outros, numa cidade que acredita ser protegida pelo divino. Mas atenção! Que não se impressionem os supersticiosos, pois são fantasmas amigos, se bem que alguns andem esfomeados. Num dos seus rituais lunares os chineses colocam à porta de casa alimentos para os apaziguar. Mas isso são outras crenças. Os fantasmas que nos dizem respeito vivem de memórias. Inscritas na toponímia, na rugosidade das pedras, nas palavras legadas. Camilo Pessanha. Venceslau de Morais. Bocage. Camões. Sim, também o vate aqui esteve – ou dizem que sim – e até teve direito a gruta, um dos mais belos espaços verdes da cidade, onde velhos jogam xadrez e ensaiam trechos de ópera cantonense.

Insistimos em percorrer a Macau que teimosamente resiste, enveredando por vielas esconsas para onde espreitavam torres prestamistas, os bancos de outrora, até chegar à Rua da Felicidade das peipeis (as gueixas chinesas) e das casas de ópio.

Continuemos, pois, até ao Porto Interior onde, apesar das gruas, acostam ainda as chalupas das tancareiras vindas da China com legumes frescos, como se o tempo tivesse parado. Perdemo-nos, por simples capricho, em pequenos pátios e lojas de ofícios mil, de vendedores de comida rápida, de quinquilharias e antiguidades – os ditos tintins – e das ervanárias que nos revelam miraculosas poções de corno de iaque, pata de urso ou pénis de cão, entre centenas de outras mezinhas. Um mundo de cores e cheiros, contrastes expostos em plena calçada à portuguesa.

Já em plena baixa, na Rua das Mariazinhas, um grupo recreativo cumpre a tradicional Dança do Dragão – acto obrigatório em inauguração que se preze. Ali ao lado, em pleno centro histórico, a praça do Leal Senado. Montra do poder de antanho, local de encontros, pulsar de uma cidade rejuvenescida.

Macau mantém, apesar de tudo, a sua dimensão humana. Pode ser percorrida a pé em poucas horas ou de riquexó, esse colorido triciclo asiático. Haverá outro lugar assim? Assim escreve-se “assi” no doci papiaçam di Macau, dialecto dos macaenses, resultado de uma miscigenação secular, em busca do património intangível da humanidade, que o tangível são favas contadas. Desde 2005 constam na criteriosa lista da UNESCO um conjunto de edifícios. Património que os habitantes muito prezam, e, por isso, não querem torres de betão a tapar o farol da Colina da Guia, o mais antigo da Ásia.

Joaquim Magalhães de Castro

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