CELIBATO E QUESTÕES CORRELACIONADAS

CELIBATO E QUESTÕES CORRELACIONADAS

Fidelidade, hoje?

Um número atrasado do L’Osservatore Romano, jornal oficial do Vaticano, pôs-me na pista de um livro do padre Leonardo Sapienza, responsável da Prefeitura da Casa Pontifícia, encarregada do protocolo do Papa.

O título do livro, “Paolo VI – Non esistono lontani”, inspira-se na frase deste Papa: «Para um católico não deve haver longínquos», equivalente a todos devem ser nossos próximos. No Papa Francisco encontram-se vários pontos de contacto e expressões comuns a Paulo VI, não só esta. Como se sabe, Francisco beatificou Paulo VI em 2014 e canonizou-o em 2018.

O livro recolhe discursos e escritos vários de Paulo VI, alguns inéditos, como a transcrição da audiência concedida em 1970 ao cardeal D. Bernard Alfrink, de Utrecht (Países Baixos), acerca do celibato sacerdotal. Um texto interessante e certamente aquele que mais atraiu a atenção dos media.

O padre Leonardo Sapienza recorda que quando alguns voltaram a querer acabar com o celibato sacerdotal (nomeadamente durante o Sínodo sobre a Amazónia, em 2019), Francisco repetiu várias vezes a posição de Paulo VI. No regresso da viagem ao Panamá, em Janeiro de 2019, disse concretamente: «– Vem-me à memória a frase de São Paulo VI: “prefiro dar a vida a mudar a lei do celibato”. Lembrei-me disto e quero afirmá-lo, porque é uma frase corajosa. Disse-a [Paulo VI] entre 1968 e 1970, num momento mais difícil que do actual».

Depois de procurar em vão esta frase, o padre Leonardo Sapienza perguntou ao Papa Francisco onde a tinha lido e ele respondeu que a tinha ouvido a várias pessoas, mas pediu-lhe que se continuasse a procurar, porque queria conhecer a referência. Mobilizaram-se os arquivistas da Secretaria de Estado, que conseguiram finalmente localizar a frase, na referida audiência ao cardeal Alfrink.

O padre Leonardo Sapienza conta que Francisco lhe entregou a documentação encontrada, juntando um cartão autógrafo: “Isto é aproximadamente a expressão ‘prefiro dar a vida’ [que tinha atribuído a Paulo VI]. Eu penso o mesmo que São Paulo VI, só com uma diferença: ele é santo”.

Para apreciar a firmeza de Paulo VI nesta audiência, recordo que ele já se tinha pronunciado com clareza três anos antes, na Encíclica Sacerdotalis Caelibatus. Extraio, resumidamente, algumas frases da transcrição da audiência:

“O Santo Padre afirma que pensou muito na conversa de ontem, (…) a situação na Holanda é grave, é necessário ter compreensão e caridade (…). Alfrink refere a declaração dos bispos [holandeses] (…) acerca da ordenação de homens casados e da readmissão de padres casados. (…) O Papa declara: impossível”.

Alfrink tenta matizar. “O Papa responde: é preciso ser explícito”.

Tratam de um caso particular. A transcrição continua: “O Papa pensa que é preciso aguentar firmemente”.

O cardeal Alfrink recorda a falta de padres. “O Santo Padre diz que (…) não se deve fazer. O Papa tem a visão, a responsabilidade; considera que seria trair a Igreja”.

Alfrink insiste. O Papa não cede. A argumentação sucede-se de parte a parte. Alfrink propõe, mesmo que com um critério restritivo. “[Diz o] Santo Padre: não fiquei convencido”. Alfrink refere homens casados de grande qualidade. “Santo Padre: que façam apostolado laico”. Alfrink pede que se estude, ambos argumentam. “Santo Padre: não ficaria com a consciência tranquila. Seria virar de pernas para o ar a disciplina da Igreja latina”. O Pontífice aceita que os assuntos se estudem. “Mas, por dever de sinceridade, não quero dar-vos a esperança de que se aceitem padres casados (…). Isto pode acontecer em casos extremos, mas não como regra, nem como norma. Seria a ruína”.

A última frase é “prefiro morrer ou demitir-me!”. O cardeal Villot, então Secretário de Estado, escreveu ao lado desta frase “não divulgar”.

Leonardo Sapienza comenta o sentido de responsabilidade de Paulo VI: “Para [ele], a fidelidade é imperativa e difícil, mas necessária, para ser inteiramente fiel à mensagem. Ainda que [Paulo VI] acabe por concluir tristemente: ‘a fidelidade não é a virtude do nosso tempo’ (11 de Outubro de 1972)”.

Na foto que acompanha este texto, dois santos: Paulo VI com a Madre Teresa. Fotografia do álbum que acompanhou a documentação da causa de canonização (Positio super virtutibus) de Paulo VI.

José Maria C.S. André

Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *