Cartas do Bornéu – 29

O morrião e as lápides

Outrora um reservatório de água, o Taman Budaya é hoje jardim público com bancos abrigados por gigantescas copas de acácias-javanesas e castanheiros da Índia e um quiosque-restaurante onde velhos e novos merendam laksa e jogam ao dominó. Há ali perto a escola primária de Santa Teresa, o colégio de São José e uma igreja católica frequentada maioritariamente por chineses. Mesmo ao lado, encosta acima, um cemitério esparramado por um terreno matoso na idêntica medida em que o é esmerado o interior do templo. Por força do ofício, e por ser homem de vasta curiosidade, cemitérios são locais que sempre visito. Por isso, e não sem o natural receio de poder vir a ser mordido por alguma cobra por ali acoitada, aventurei-me naquele chão na esperança de encontrar apelidos portugueses nas lápides. Deparei com três. E outros três quartos dum apelido, por assim dizer. O Souza da senhora Regina, falecida em 1907, é por demais óbvio. Também o é, se bem que abastardado, o Decena (que só pode derivar de De Sena) de uma tal Winifred Bibiana, nascida em 1933 e falecida em 1962, muito nova ainda. Bastante curioso e nada comum é o Mangas do senhor Paul – fácies claramente luso-chinês – partido do mundo dos vivos em 1965. Já o Gaspar de um dito Joseph é em três quartos luso, pois poderá ser a sua origem eventualmente castelhana. Mostrar-se-á infrutífera a minha tentativa junto do gerente chinês do Kuching Waterfront Lodge no sentido de identificar qualquer desses sobrenomes; tão pouco soube-me ele dizer algo acerca de eventuais episódios da tradição oral envolvendo portugueses de antanho, nem mesmo com a ajuda da muleta Macau e o facto do senhor em questão ser católico, e daqueles praticantes, como o atestavam os quadros da Virgem e de Cristo presentes nas paredes da recepção, lado a lado com as lanternas vermelhas abobadados e envelopes para lai-sis. Assim, a memória de uma mais do que óbvia lusa passagem por Kuching e terras adjacentes mantém-se, até ver, oculta à espera do seu desvendador de mistérios.

Não muito longe dali o Dewan Tun Razak, colégio durante a “dinastia” Brooke vertido em madrassa nos anos mais recentes, acolhe hoje o museu islâmico de Sarawak. Pobremente iluminado, compõem-no sete galerias com maquetas de mesquitas, artefactos do dia-a-dia, moedas, azulejos, barcos, peças de cerâmica, jóias, instrumentos cirúrgicos, bússolas, instrumentos musicais, vestes e armas, tudo aquilo relacionado com o universo muçulmano, mormente atestado por uma réplica da espada de Maomé. Informa-me o guarda que o prédio em construção nas redondezas se destina a um novo museu onde irá parar o espólio actual e inúmeros outros objectos arrecadados. «Temos muitas peças armazenadas e não há lugar para as expor», comenta. Que seja bem vindo, é o que posso dizer antes de ver para crer, até porque cheguei a pensar estar perante um empreendimento hoteleiro, desses desprovidos de dó ou piedade, descaracterizadores dos centros históricos das cidades do Sudeste Asiático. Constato, no livro de registos, que sou o único visitante desse dia. No dia anterior, ninguém. E dois dias antes, apenas um indivíduo de nacionalidade alemã. «É nossa política não cobrar bilhetes. Apenas convidamos as pessoas a fazer um donativo», esclarece o homenzinho.

A secção mais interessante de todo o museu é, sem dúvida, a do armamento. Inúmeros exemplares de krises, escudos, lanças e muito outro material bélico. Realço um morrião em excelente estado de conservação (nem uma pinta de verdete!) que segundo a informação disponibilizada terá pertencido a um “guerreiro de Mindanau”, pois fora alguém dessa ilha quem primeiro, “no século XVI”, o envergou, dando a entender que será cópia manufacturada com base num modelo europeu. A julgar pelo aspecto, o dito morrião só pode ter pertencido a um militar português ou então espanhol, e não parece, de todo, uma réplica de fabrico regional. Junto a ele, umas quantas caneleiras, também em excelente estado. Penduradas na parede, maças assustadoras, uma delas em forma de cabeça de diabo e uma outra decerto inspirada nos duriões, quiçá uma analogia ao seu odor mortífero.

Uma vez que estamos no domínio das religiões, recorde-se aqui a Masjid India, a mesquita mais antiga da cidade, frequentada por gujaratis e quelins locais. Data de 1834 e a entrada principal faz-se por uma minúscula viela que liga a zona ribeirinha à India Street, outrora chamada Rua dos Quelins, fechada ao trânsito em 1993. Falta indicar o ano e o responsável pela cobertura metálica hedionda que lhe puseram em cima. Mas que coisa mais estranha: uma suposta rua de indianos com caracteres chineses em praticamente todos os edifícios comerciais! Depois de várias tentativas, deparei com um lojista do origem subcontinental. Era um quelim de Travancore – «os portugueses deixaram por lá um forte, sabe disso não sabe?» – queixando-se em surdina da discriminação a que estavam sujeitos, enquanto me contava a história da India Street, que antes dos britânicos se chamava Keling Street. Já numa outra ocasião ouvira este tipo de desabafo, dessa vez proferido por um residente de Georgetown com raízes na ilha de Hainan, como tantos chineses do arquipélago malaio. Dizia ele: «Por mais que nos esforcemos e demos o nosso contributo à sociedade, veêm-nos sempre como cidadãos de segunda classe. O patamar superior da escala social pertence aos malaios, e eles ficam agarrados tal como as lapas se colam aos rochedos. Não reparou que são sempre eles nos postos do funcionalismo público?».

Joaquim Magalhães de Castro

 

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *