Atalaia marítima
Embora nos garantam os serviços de turismo malaios que a zona norte do Bornéu está livre da ameaça de piratas, a verdade é que tudo pode acontecer, daí a existência de um posto de polícia junto à praia e da visita que me fizeram dois dos agentes escalados, a mim e à meia dúzia de estrangeiros presentes na altura. Pelo sim e pelo não, o melhor é proceder ao registo de todos os visitantes.
Confesso que me passou várias vezes pela cabeça a possibilidade de um rapto. Sobretudo à noite, quando se acendiam luzes ao largo, meros barcos de pescadores, sei bem, mas que uma imaginação mais à solta depressa transformava em embarcações de facínoras. Imaginei-os a desembarcar e até cogitei algumas possibilidades de esconderijos. Nada, porém, que me tirasse o sossego, pois de respiração acertada estava com um adorável gatito que sempre me fazia companhia sem nada esperar.
Sei que não será daqui a muito tempo e provavelmente será tarde demais quando, e se, aí voltar. Falo do inevitável: a chegada em peso das hordas turísticas e dos hotéis em cadeia ou cadeias de hotéis, o que vai dar ao mesmo. Parece-me que o único travão à anunciada destruição dos paraísos deste mundo – e custa-me dizê-lo – é o actual medo colectivo. Assim estamos – na ponta do Bornéu como em tantos outros locais do planeta – encurralados entre o predador turismo de massas e as tenebrosas ameaças terroristas.
Tempo houve para vasculhar as praias das redondezas, todas elas sem vivalma mas com muito plástico dado à costa a conspurcar o areal. Instalações degradadas e ao abandono são os sinais demonstrativos de dias outros, bem mais agitados. Tão pouco parecia haver clientes para algumas humildes iniciativas de gente local, caso do improvisado Secret Place Café, umas quantas tendas montadas e placas a avisar os candidatos a nadadores que o deviam fazer por conta e risco próprio pois os agueiros da zona são por demais traiçoeiros.
Em jeito de curiosidade saliento um pote de cerâmica, rude e sem decoração, sedimentado num dos rochedos de arenito que se prolongava mar adentro. Será comprovativo de uma ocupação pré-histórica ou simples resquício da carga de algum navio ali naufragado?
Informa o autor do “Roteiro” que após deixaram o porto de Nossa Senhora de Agosto, a 27 de Setembro, o nosso já conhecido João Carvalho, dito “Carvalhinho”, devido à sua conduta no porto do Brunei, seria destituído do comando voltando a ocupar o posto de piloto. A Trinidad passaria então as mãos de Gonçalo Espinosa, enquanto a chefia da Victoria transitava para Sebastião Delcano. Sobre este assunto nada nos diz Pigafetta, embora entre em pormenores a respeito de um outro episódio. Cedo depararam os navegantes com um junco que vinha do Bornéu e que trazia a bordo, além da habitual carga, o governador da ilha de Palauan. Presumo que não soubessem os ibéricos desse detalhe quando lhes ordenaram que arriassem as velas, e como aqueles os ignoraram capturaram o junco “pela força”, como admite Pigafetta. Não foi a primeira nem seria a última vez que os membros da expedição se envolveram em actos de pirataria.
Ao aperceberam-se da presa que tinham entre mãos informaram que a liberdade só seria obtida após a entrega de “quatrocentas medidas de arroz, vinte recos, vinte cabras e cento e cinquenta aves de capoeira”. Informa Pigafetta que apesar do ultimato o governador filipino se terá mantido muito cordial e até ofereceu cocos (era a carga principal do navio), bananas (na altura chamadas “figos”), cana-de-açúcar, potes cheios de vinho de palma, entre outras coisas. Confrontado com tal liberalidade, os europeus devolveram os punhais e arcabuzes que entretanto tinham subtraído aos tripulantes do junco e decidiram oferecer ao governador, em jeito de presente, “uma bandeira, uma capa de damasco amarelo, umas quantas braças de pano verde”. Ao seu filho, que o acompanhava, deram “uma capa de pano azul” e a um outro notável uma veste de pano verde, “entre outras coisas”, e dali – assegura Pigafetta – teriam saído todos muito amigos.
A 26 de Outubro as naus castelhanas viram-se aflitas com uma gigantesca tempestade e desta feita não apareceu, nos mastros, apenas o “fogo de Santelmo” mas também os “fogos de São Nicolau e de Santa Clara”, não no topo mas nas partes inferiores do lenho. Curiosa foi a promessa feito pelos marujos: oferta de um escravo a cada um dos mencionados santos, caso estes os libertassem de tal aflição.
Antes de chegar às Malucas, a 6 de Novembro, evento alegremente saudado com salva de canhão, os expedicionários tiveram um outro relevante encontro marítimo que Pigafetta omite mas que o autor do “Roteiro” destaca. Tratava-se de um “parau”, embarcação local, com vinte tripulantes comandados por um homem “que estivera em Maluco em casa de Francisco Serrão”. Estranha-se que o italiano tenha ignorado tão importante encontro, pois Serrão – o primeiro europeu a residir nas Ilhas das Especiarias – era a pessoa mais informada acerca daquela tão apetecida região, se bem que jogasse no campo adversário, pois era português e fiel à Coroa de Lisboa, embora amigo de longa data de Fernão de Magalhães.
Outro facto curioso é a carga do dito “parau”: sagu em forma de pães. O sagueiro é uma espécie de palmeira selvagem que cresce nas zonas pantanosas e que tem múltiplas utilizações. Dele tudo é extraído, desde os materiais para a construção das casas até à farinha para fazer pão, passando por uma popular bebida leitosa de considerável teor alcoólico, “o vinho de palma” ou “toddy”.
Joaquim Magalhães de Castro