As casas longas dos rungus
Do legado colonial de Jesselton três estruturas foram poupadas aos bombardeamentos aliados. Uma delas, a torre de Atkinson, com relógio e coruchéu de pontas recorvadas, qual pavilhão chinês, data de 1905 e deve-se à vontade de uma mãe inglesa em imortalizar o nome do filho, vitimido pelo tifo. Serviu de farol durante largos anos.
Após um olhar de relance aos edifícios dos Correios e do posto geral do turismo – as restantes sobrevivências – conversados ficamos quanto a cunhos históricos.
O cais é refúgio natural. Questão de apreciar à luz do dia as embarcações de pesca, resquício de um passado que nos remete para a lavra do escriba. Chama-nos a atenção Pigafetta para os juncos da época, “os maiores barcos a sulcarem as águas do sultanato”. Tão fortes quanto “os nossos navios de carga” e os mastros, como ainda hoje, com o mesmo tipo de madeira da do casco. Novidade eram as velas, urdidas a partir de cascas de árvore, certamente do género das que forram o interior das cabanas nativas.
Consolidavam a parte inferior do costado, as ditas obras vivas, tábuas unidas por cavilhas de madeira. Já as obras mortas, “até à altura de dois palmos”, contavam com o apoio de uma estrutura de bambu projectada para fora da amura, a servir de contrapeso e estabilizador. Não se vislumbram hoje semelhantes apêndices em navios de médio e grande porte, mas são comuns – como o caro leitor certamente terá já tido a oportunidade de constatar – nas pequenas embarcações que coalham as cristalinas águas dos arquipélagos da Insulíndia.
É tempo de nos fazermos à estrada e deixarmos KK – assim, em abreviatura, designa a sua cidade a gente de Kota Kinabalu, apadrinhada pela serra que espreita a uns cinquenta quilómetros e constitui hoje irrestível magneto para uma determinada casta de visitantes, montanhistas, ciclistas e afins, incondicionais entusiastas de Sabah.
Kinabalu deriva do termo indígena Aki Nabalu, “a montanha dos antepassados”, e é referência orográfica obrigatória seja qual for o posicionamento do viajante na rosa dos ventos.
Se quisermos reconstituir a saída da frota da Magalhães do Bornéu rumo às Malucas, objectivo primordial da malograda expedição, teremos de regressar à embocadura do rio Brunei e costear a ilha de Labuan, juntamente com Kuala Lumpur e Putrajaya, parte integrante dessa curiosa figura político-administrativa que é o Território Federal da Malásia e cujo estandarte faz lembrar o da Venezuela. (Já agora, o amarelo e branco da bandeira do Brunei remete-nos para a do Vaticano).
As viagens da actualidade cumprem-se nos ares condicionados de esguios barcos de vidros fechados com bem visíveis e rubros caracteres chineses debuxados no calado mostrando assim quem controla os negócios nestas latitudes. Aliás, o sínico alfabeto é uma constante da paisagem urbana do Bornéu, seja ela qual for. Nas placas azuis escuras anunciadoras de sucessivas igrejas católicas (todas com diferente padroeiro), prova de que o Islão por aqui se mantém em minoria, os ditos assumem garrida versão amarelo torrado.
Já que por aqui andamos, porque não percorrer o norte costeiro da província malaia de Sabah olhando sempre que possível, i.e, quando as birrentas nuvens o permitem, o Kinabalu reflectido nos charcos dos espaçados arrozais? É como se a montanha se estivesse a ver ao espelho. Verdadeiro deleite! Por momentos esqueço-me até das possibilidades paradisíacas que sei existirem junto à costa, todas de difícil acesso, como convém, onde facilmente, dispusesse eu de algum tempo de reserva, demorar-me-ia um par de semanas.
Redobram as oportunidades de merecidas contemplações ao venerado Kinabalu nos minutos de inebriante ascensão a um acentuado cabeço num contínuo curva e contracurva e – azar meu – sem um pedaço de berma para estacionar; empreitada seguida de uma previsível decepção: enorme unidade fabril de zinco ondulado ao fundo de uma recta anunciadora de uma sucessão de monótonos e invasivos palmares. A indústria de óleo de palma e derivados, aliada à da borracha e ao desmatamento a eito e sem preceito, tem de forma impediosa devastado a selva do Bornéu, aniquilando a sua biodiversidade e empurrando homens e animais ainda mais para o interior. É o progresso, dizem os dólares pensantes disfarçados de cabeças.
Enjoado de tanto palmar, retiro genuíno prazer no sobe e desce tipo montanha-russa pelos cômoros que ilustram a paisagem, sempre de olhar fixo no asfalto pois de nada me interessa o monocultivo contido em ambos os lados da estrada. Interessarão, estou seguro que sim, perdidos interiores onde habitam ainda, seguindo usos e costumes ancestrais, os mais renitentes rungus, legítimos donos destas terras. Pacíficos por natureza, os rungus foram ao longo dos tempos obrigados a retroceder para as profundezas da floresta devido às constantes e sangrentas razias a que eram sujeitos pelos ferozes piratas do Mar de Sulu.
Na verdade, muito antes dos europeus, os mercadores malaios e os piratas foram os principais responsáveis pelo generalizado êxodo das tribos auctótenes para o interior da selva em todo o Bornéu. Designam-nos oficialmente de orang asli, ou seja, povo original, mas a verdade que foram definitivamente relegados para as margens da sociedade.
Aos turistas oferecem os rungus, a troco de uns quantos ringgits, nos lugarejos de Bavangazzo e Rumah Pajang, amostras da sua arte de forjar o ferro para os gongos, instrumento primordial do seu expressar musical, e dos domicílios tradicionais, misto de espaço privado e espaço comunitário, conhecidos commumente como casas longas. Tempos houve em que habitualmente comportavam setenta e cinco portas, o correspondente a um igual número de famílias, que partilhavam a longa varanda coberta que serve de espaço comum de socialização. Hoje raramente um casa longa possui mais do que dez portas.
Joaquim Magalhães de Castro