Cartas do Bornéu – 12

Espinhos do Mar de Sulu

Entre as muitas riquezas do Bornéu a mais cobiçada era a cânfora, “espécie de bálsamo” extraído do lenho de uma árvore endémica “que escorre em gotas, finas como fios de seda” e que uma vez exposto ao ar “se evaporava gradualmente”, como notava Pigafetta. Ainda hoje, a melhor das cânforas é obtida nas exuberantes florestas dessa ilha, que em termos de área surge logo a seguir à mastodôntica Gronelândia e à vizinha Nova Guiné.

A propósito: lembrava o cronista da magalhãnica expedição que o Bornéu era tão grande que para o circundar seriam necessários três meses de navegação. À cânfora produzida no arquipélago malaio, mais cara e de superior qualidade à equivalente da China ou do Japão, conheciam-na como “cânfora de Barus”, assinalando assim o porto de Samatra de onde, em tempos mais remotos, abundantemente era escoada.

Quantidade apreciável de outros apetecíveis produtos locais como a canela, o gengibre, as laranjas e os limões, a cana-de-açúcar, os melões, as abóboras, os rabanetes e as cebolas, e ainda os “mirabolanos”, pequenos frutos tropicais com propriedades farmacêuticas, certamente foram embarcados na Trinidad e na Victoria. A canela, como item transaccionável; as restantes vitualhas para assegurar as vitaminas preventivas do escorbuto, essa ameaça tão temida pelos homens do mar e mais letal do que todas as tormentas juntas.

Só uns anos mais tarde começariam a chegar, àquele e a muitos outros portos da região, sementes de vários frutos sul-americanos para ali transportadas nas naves portuguesas e castelhanas e que nesses solos igualmente subtropicais germinariam, como o atestam os comuns ananases e papaias e as não tão comuns anonas (a dita fruta-do-conde) e graviolas, da mesma família mas com sabor e características morfológicas diferentes.

Era a viagem das plantas em plena marcha e hoje em dia materializada nas coloridas bancas dos vendedores ambulantes ribeirinhos em cidades como Bandar Seri Begawan e Kota Kinabalu, esta última conhecida sobretudo pelos mercados nocturnos de marisco e peixe fresco instalados no cais com as proas das embarcações de pesca à distância de um, talvez dois, braços estendidos. Que o digam os turistas chineses e sul-coreanos que, horda puxa horda, lá dão um salto a degustar iguarias antes de se porem ao largo e de molho nas águas tépidas das vereanistas ilhas de Gaya e Manukun, pois incursões pela zona costeira de Sabah não é para todos.

Os limites terrestres e ilhas adjacentes do leste e sudeste da província são até desaconselhados, pois se é verdade que longe vai o ano terribilis de 2000, marcado pelo rapto de vinte e uma pessoas, entre turistas e funcionários, levado a cabo num resort de mergulho da paradisíaca ilha de Sipadan por uns quantos fascínoras do Abu Sayyaf, não será mentira afirmar que continuam a ocorrer de quando em vez sequestros de estrangeiros, na maioria dos casos sem qualquer repercussão internacional por se tratarem de meros pescadores originários dos três países que comungam as águas do Mar de Sulu, actualmente, tal como no século XVI, uma das paragens asiáticas mais inseguras para a navegação, comercial ou de recreio.

Como recentes episódios deste lamentável folhetim temos o caso, em 2014, de uma mulher de Taiwan levada de um hotel de Semporna após assistir ao assassinato do marido e, o ano passado, a decapitação de um velejador alemão (reincidente em zonas de risco, pois fora anteriormente feito refém ao largo da Somália) pelo Abu Sayyaf. Mediatizadas ou não, as vítimas sucumbiram às mãos de cobardes e cruéis assassinos (agora em conluio com essa aberração chamada ISIS) que os media insistem em eufemisticamente classificar de “lutadores”, “guerrilheiros”, “rebeldes” e cócegas afins.

«Se alguém o mandar parar na estrada, ignore e siga sempre», recomenda o sujeito chinês a quem alugo o Proton Saga, desde logo colocando fora da equação a possibilidade de algum dos possíveis bandidos de estrada poderem ser malaios. O perigo, segundo ele, vinha dos inúmeros «indocumentados cidadãos filipinos» presentes em toda a província, alguns deles «possíveis soldados» ou «informadores», não só do Abu Sayyaf como também da Frente de Libertação Islâmica Moro, que há décadas reivindica uma parte substancial do norte do Bornéu, além da implantação de um regime islâmico em Mindanao. Uns e outros, quando não aterrorizam, contrabandeiam seres humanos, droga e gasóleo, pois o vil metal, mais do que qualquer causa, fala sempre mais alto. E, como é óbvio, contarão entre os seus cúmplices com vários malaios do Bornéu.

Para provar que o perigo ronda também quem está em terra, o senhor Hok recorda o rapto de um casal de chineses da esplanada do Ocean King, restaurante especializado em marisco, a sul da cidade de Sandakan (que certamente inspirou o mais conhecido herói de Emílio Salgari), o que obrigaria o reputado estabelecimento comercial a mudar de local.

«Se pernoitar em Sandakan, não o faça junto à costa. Opte por um hotel bem no centro da cidade», aconselha Hok.

Há antecedentes que justificam tão desconfortável situação. A 23 de Setembro de 1985, duas dezenas de homens armados desembarcaram numa pequena cidade do distrito de Lahad Datu, matando pelo menos vinte e uma pessoas e ferindo outras onze. Mais recentemente, a 11 de Fevereiro de 2013, vários partidários filipinos das Forças de Segurança do Sultanato de Sulu e Norte de Bornéu, nesse mesmo distrito, ocuparam a aldeia de Tanduo. Iam a mando de Jamalul Kiram III, pretendente ao trono do sultanato, e era seu objectivo afirmar a reivindicação territorial filipina da zona oriental de Sabah. Em resposta, as forças de segurança malaias cercaram a aldeia e, apesar das prontas negociações entre o grupo e representantes dos Governos das Filipinas e da Malásia para se chegar a uma solução pacífica, travou-se uma batalha que resultaria na morte de 56 seguidores do autoproclamado sultanato de Sulu, tendo a contraparte malaia registado a perda de dez vidas, seis delas de civis.

Joaquim Magalhães de Castro

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