Cartas do Bornéu – 10

Os relatos dos cronistas

Cumprida a missão, a comitiva ibérica regressou aos navios e tudo não teria passado de mais um previsível início de relações comerciais entre povos de regiões antípodas, não fora um incidente que de modo dramático precipitou os acontecimentos. Informa-nos o cronista que na manhã de 29 de Julho, “uma segunda-feira”, viram aproximar-se das duas naus “mais de cem pirogas, divididas em três esquadrões”, e outros tantos “tungulis”, pequenas embarcações locais. Temendo vir a ser atacados à traição, os europeus desfraldaram as velas, e tão ansiosamente o fizeram que deixaram para trás uma das âncoras. As suspeitas adensaram-se quando se aperceberam de que oito embarcações de considerável porte, “chamadas juncos”, tinham ancorado na noite anterior na rectaguarda da Trinidad e da Victoria, interpretando o acto como uma estratégia de cerco levada a cabo pelos malaios. Assim, foi sua primordial preocupação desembaraçarem-se dos juncos, contra os quais fizeram fogo, tendo ferido e matado muitos dos seus tripulantes. Como resultado do ataque surpresa, quatro juncos seriam apresados, tendo os outros quatro conseguido escapar “e os seus ocupantes chegar a terra sãos e salvos”. Num dos juncos capturados viajava o filho do rei da ilha de Lução (Luzon, Filipinas), capitão-general ao serviço do sultão de Brunei, que acabara de conquistar, “com a ajuda desses juncos, uma grande cidade chamada Laoé, erguida na ponta da ilha perto da grande Java”, ou seja, a actual Lahout, no sudoeste do Bornéu. Pigafetta esclarece que a expedição tinha saqueado essa cidade, “porque o povo optara por obedecer ao rei gentio de Java”, em vez de prestar vassalagem “ao rei mouro do Brunei”, como seria mais lógico.

Pigafetta não é nada meigo no retrato que traça de João Lopes de Carvalho, apresentando-o como um homem sem escrúpulos. Diz-nos ele que o português, sem prevenir os companheiros, libertou o capitão-geral de Lução, ao que consta, a troco, “como nós soubemos depois”, de uma grande soma de ouro. Argumenta Pigafetta que se tivessem mantido esse militar filipino como moeda de troca, Siripada “provavelmente ter-nos-ia concedido tudo o que desejássemos pelo seu resgate”, e isto porque o dito capitão era valoroso guerreiro “temido por todas as nações inimigas do rei mouro”, ou seja, Siripada. Este, ao inteirar-se dos danos feitos aos seus juncos, apressou-se a informar os visitantes, “por um dos que estava em terra a comerciar”, que os barcos estavam ali “de passagem, para ir levar a guerra aos gentios” e não a eles. E, para comprovar o que dizia, mandou exibir algumas das cabeças dos inimigos mortos na recente batalha em Lahout. Os ibéricos ripostaram dizendo que se assim fosse deveria ele deixar partir os dois homens, “e o filho de João Carvalho”, que ainda se encontravam em terra com os bens entretanto transaccionados, pedido que Siripada recusou. Desse modo, moraliza Pigafetta, “João Carvalho foi punido com a perda de seu filho (que nascera enquanto ele estava no Brasil)”, pois, movido pela ganância pessoal, precipitadamente negociara o capitão-general, o único que tinha na sua posse e o garante de poder reaver os camaradas e o seu filho.

Neste particular episódio a versão de Pigafetta é contestada por Gaspar Correia, autor das “Lendas da Índia”, que nos apresenta os factos de um modo diferente e que poderão muito bem ter sido obtidos nalgum dos outros testemunhos da viagem circum-navegatória; fosse o do galego Francisco Albo, que iniciou o périplo como contramestre na Trinidad e o terminou como piloto da Victoria; fosse o “Roteiro” anónimo do dito piloto genovês; fosse ainda o texto de Maximilianus Transilvanus, parente do mercador flamengo sedeado em Lisboa Cristóvão de Haro, um dos patrocinadores da expedição de Magalhães, que entrevistou os sobreviventes em 1522 e publicou os seus depoimentos um ano depois com o título “De Moluccis Insulis”. A acrescentar a estes temos a versão de António de Brito, na época, capitão da fortaleza de Ternate, e ainda um outro, pequeníssimo, relato anónimo presencial de um português, “amigo de Duarte Barbosa”, tripulante do Victoria, que se limita a fazer um sucinto resumo da viagem que cabe em duas páginas de qualquer livro.

Gaspar Correia – que na sua narrativa coloca sempre João Lopes de Carvalho, alcunhado “Carvalhinho”, como protagonista, afirmando que após a morte de Fernão de Magalhães os restantes membros da guarnição “alevantaram entre si por capitão o Carvalhinho, piloto da capitânia, a que todos obedeceram”, ao passo que Pigafetta apenas se refere ao português como “o nosso piloto” – sugere que a demonstrada hospitalidade e as generosas ofertas do sultão eram “tudo falsidades” e tinham como único objectivo apoderar-se das naus forasteiras e respectivas mercadorias, facto que despertou a suspeita de Carvalho, pois “mandou ter boa vigia de dia e de noite, e não consentiu que fossem a terra senão um ou dois homens”.

O olhar de Gaspar Correia, neste particular, diverge na totalidade do de Pigafetta. Segundo ele, a decisão de atacar os juncos surgiu como medida de retaliação pelo facto de o rei ter mandado prender os emissários enviados a terra firme, entre os quais o filho de Carvalho, criança ainda, que se apresentara na corte “muito bem vestido”, porque Siripada rogara “ao Carvalhinho que lhe mandasse seu filho”, na companhia dos que levavam o presente, porque “os filhos meninos” do sultão “choravam porque o queriam ver”, presumindo Correia que essa teria sido uma estratégia para o manter como refém. Ainda no que respeita à chegada dos navios ao porto do Brunei, António de Brito sugere que logo o sultão suspeitou que pertencessem a “portugueses que ali vinham para conquistar”, pois na memória estava fresca ainda a conquista de Malaca, dez anos antes. Informa ainda Brito que dois marinheiros gregos “tinham desertado” e instigado os malaios a fazer o ataque. Já o piloto anónimo do “Roteiro” diz-nos que a escolha para emissário encarregado de levar os presentes a Siripada recaíra em Gonçalo Gomez Espinosa, o que faz todo o sentido, pois era hábito, por motivos de segurança, o capitão da frota permanecer a bordo. Ademais, Espinosa sempre demonstrou ser um dos homens mais fiéis a Fernão de Magalhães.

Joaquim Magalhães de Castro

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