Uma templo à beira-mar
A Praia de Mira não será das mais antigas de Portugal, nem das mais importantes, mas está ligada à minha pessoa por laços familiares do lado materno. Ainda me lembro da bisavó materna, toda vestida de preto com o tradicional traje gandarês, sentada à lareira nos jantares de Natal que eram celebrados na casa da sua filha, a minha avó materna, esta já com residência na vila de Mira. Pelo que sei, a mais antiga referência à Praia de Mira, ou aos Palheiros de Mira, remonta a 1777, num artigo publicado por um jornal de Coimbra, sobre um qualquer assunto relacionado com a antiga barra do porto de Aveiro.
Neste local existe uma pequena capela que só por si e pelo seu simbolismo merece uma visita. Trata-se de uma singela estrutura, feita à semelhança dos antigos palheiros que os pescadores foram construindo nos primórdios da fixação da população, movimento demográfico que séculos mais tarde viria a dar origem à Praia de Mira.
No início, os palheiros de madeira, pintados normalmente a preto para evitar que a madeira apodrecesse rapidamente com o salitre do ar salgado do mar, eram simples estruturas de quatro paredes e um telhado – inicialmente de colmo e mais tarde de telha. Só muitos anos depois, com o crescimento da pesca, e nomeadamente da arte xávega (que em Mira ainda se pode apreciar no seu original), é que começaram a aparecer palheiros com diferentes estruturas, sendo que os pertencentes aos donos das companhas de pesca mais abonadas até ostentavam um ou mais andares com muitas janelas.
A Capela de Nossa Senhora da Conceição nasceu pela vontade de um desses donos de companha, de seu nome José Pimentel, um fiel católico muito devoto de Nossa Senhora da Graça. Por qualquer graça que havia recebido, sobre a qual não há conhecimento, decidiu oferecer uma imagem à Praia de Mira (na época denominada Palheiros de Mira). Para tal, mandou construir a dita capela mesmo em cima do areal da extensa praia. Os registos oficiais dizem que foi construída entre 1842 e 1843, e consagrada a Nossa Senhora da Graça. Volvidos cinco anos, em 1848, durante um dos fortes temporais que nos Invernos costumam assolar estas costas, a estrutura ficou completamente destruída.
Vendo-se sem local de culto, a população que já ali vivia a tempo inteiro pediu para que a capela fosse reconstruída e todos participaram na tarefa. Com a obra terminada pediram ainda que a mesma passasse a ser consagrada a Nossa Senhora da Conceição, tornando-se a padroeira destes pescadores, os quais ainda hoje acreditam que a imagem, guardada religiosamente no seu interior, tem o dom de acalmar o mar.
A estrutura, de cores branca e azul marinho, em madeira e telha, é pequena mas ampla e arejada, encontrando-se num local privilegiado da localidade, sobranceira ao mar. Todos os anos, por volta desta altura, é realizada uma romaria, cuja organização está a cabo da comissão de moradores, bem como todo o programa religioso e pagão. É uma das festas religiosas de Inverno desta zona de Portugal, atraindo milhares de pessoas. Infelizmente, devido à pandemia, este ano não se irá realizar, mas os organizadores não deixaram de engalanar a capela como sempre fazem para as festas.
Depois do desaparecimento da capela original (a actual foi feita à imagem da primeira) em resultado do temporal, a mesma “sorte” quase ia acontecendo em Maio de 2017 – um fogo deflagrou junto do altar onde os devotos acendem as velas diariamente. Apesar de ter sido detectado bem no início, os estragos ainda foram de dimensão considerável. À semelhança da primeira vez a população local não se deixou ficar, tendo voltado a reunir forças e apoios financeiros. Em pouco tempo tinham a sua capela reconstruída e aberta ao culto mais uma vez.
A estrutura do templo é rectangular, com uma fila de bancos de cada lado do corredor central, sendo encimado pelo altar, tudo num estilo muito simples e austero. Embora não tenha qualquer aspecto mais exuberante, respira-se beleza e serenidade. A paz que se sente no seu interior, especialmente bem cedo quando ainda se consegue ouvir o rebentar das ondas do mar mesmo ali ao lado, sem o barulho dos carros que passam na estrada, não deixa ninguém indiferente.
Na minha infância era ali que costumava estar na praia com os meus avós e primos, pelo qua a capela está nas minhas memórias mais queridas de infância. Foram muitas as vezes que me refugiei no seu interior para fugir ao calor do sol de Verão que nesta zona pode ser impiedoso para as peles mais jovens.
A Capela de Nossa Senhora da Conceição apenas tem um aspecto negativo, que até já foi corrigido. Durante muitos anos serviu como casa mortuária, uma vez que o cemitério local não estava apetrechado para o efeito. Uma realidade que sempre deixou a população triste mas que nos anos mais recentes foi rectificada com a construção de uma casa mortuária no cemitério da Praia de Mira. Deste modo, a capela ficou e continua apenas reservada às actividades ligadas ao culto religioso, usufruindo a população e os visitantes da paz que emana.
Na foto que ilustra o texto pode ver-se o cordão de luz com que a capela é embelezada todos os anos e que este não é excepção, apesar da pandemia.
João Santos Gomes