Tatuadores, surfistas e um arquitecto de antanho
No arquipélago indonésio, quando menos se espera, deparamos com pequenos detalhes, algumas pedras, pessoas, sempre, que de uma forma ou outra nos trazem à memória a passagem e estada dos portugueses por aquelas paragens. Não só no passado, como hoje também.
É o que mais de próximo existe do paraíso. Pequeníssimo ilhéu feito de coqueiros e fina areia branca ao largo de Lombok, Gili Meno pode ser percorrido a pé em apenas 60 minutos. A pé ou de carroça puxada por uma mula. Que veículos motorizados não há. Mas como nem tudo pode ser perfeito, os mosquitos proliferam, noite e dia, na estação das chuvas, saídos direitinhos de um lago que na estação seca dá sal. Produto que não é significativo para a micro-economia da ilha. Tão pouco o é o peixe, retirado das cristalinas e mornas águas, artesanalmente, através do mergulho ou das redes lançadas por homens que boiam onde não há pé ou que em pé se aguentam quando a maré vai baixa. Lá os vemos, semi-submersos, em cima do coral sem qualquer receio do poderoso veneno do peixe-pedra nem cientes da fragilidade dessa sempre ameaçada forma de vida marinha. Por isso pisam o coral. Ou melhor, o que sobra do coral. De resto, o principal atractivo de Meno e de outras duas Gilis, Air e Trawangan. A economia dessas ilhas depende do número de visitantes estrangeiros que ali esperam poder apreciar, nos recifes, não só o coral mas também as conchas gigantes, a peixaria colorida, inofensivos tubarões e até mesmo as tartarugas que junto a esse tão frágil ecossistema traçam as suas rotas.
Para além da ausência de viaturas, outra das vantagens de buscar refúgio em Meno é poder vermo-nos livres de ofertas não solicitadas, sina de quem visita área turista-ó-dependente. Mas mesmo em tempo de crise, ao longo das praias, resistem certos vendedores: as miúdas dos ananases «não compra agora, compra mais tarde; não compra mais tarde talvez compre amanhã, não é?», o homem das pulseiras de pérolas e o massagista Rhamat, um velho com os olhos corcomidos pelas cataratas que fuma tabaco de enrolar.
«Boa tarde! Como está», diz ele, na sua abordagem inicial, ao mesmo tempo que abre a sacola de verga. A servir de comprovativo do seu mister mostra ao possível cliente um papel plastificado com alguns dizeres datados de 22 de Abril de 2001, rubricados por nome luso: “Recebi massagens na Tailândia, Alemanha, Índia, Espanha e Marrocos, mas nenhuma delas se compara como aquela que me fez o senhor Rhamat. Vale bem o dinheiro gasto”. Assina, “with love”, Master Tattoo Artist from Portugal, Zakarias.
CUIDADO COM OS MACACOS
Por falar em perfeição… Na vizinha Bali, diz-se que os cães existem como contraponto a toda a beleza natural de que a ilha é dotada. Vadios, sujos, raivosos, quem sabe!, são um tormento em noite de lua cheia, ou por essa altura. Os macacos, outra das espécies em abundância, apesar da agressividade, não uivam. Valha-nos isso.
Os mais famosos símios de Bali habitam as redondezas do templo de Ulu Watu, na península de Bukit. Diariamente aguardam amendoins e outros mimos de turistas que em excursão ou por iniciativa individual se deslocam ao templo, mais para assistir à exibição da dança tradicional kecak – protagonizada num palco natural com o pôr-do-sol como pano de fundo – do que propriamente para apreciar o rendilhado da arquitectura, já que o espaço sagrado encavalitado numa falésia é reservada exclusivamente a crentes hindús. E a símios, claro. Não obstante, vale a pena a deslocação, pelas vistas e a falésia, que faz lembrar o Cabo da Roca.
À entrada do templo, onde somos obrigados a pôr à cinta o sarong e a fita amarela, por deferência às múltiplas divindades, um quadro de ardósia alerta para a imprevisibilidade das famílias desses nossos parentes afastados. Imprevisibilidade essa que pode causar dissabores aos mais distraídos. A giz, em quatro línguas, uma delas Português, fica o aviso : “Tire seus chapéus, brincos e seus óculos. Cuidado com os macacos no templo”.
Certamente que esta pouco usual aplicação da prosa de Camões se deve aos surfistas brasileiros que de Bali fazem local de peregrinação obrigatório. E é precisamente ao largo da costa da península de Bukit que se situam as ondas mais altas, mais enroladas, logo mais apetecidas. Vê-mo-las a desfazerem-se, ao fundo das falésias.
CANTINHO DO BRASIL
Aos surfistas brasileiros se explica também a existência de um dos restaurantes mais requisitados pelos visitantes com bolsas menos recheadas. Escondido numa das transversais de Kuta, curiosamente perto de uma hospedaria chamada Lusa Hotel, o Brasil Bali é um desses locais onde se come bem e barato.
A ideia de abrir o tasco surgiu de um balinense por sugestão de um surfista carioca, e as receitas mais exóticas, que é dizer brasileiras, aprenderam-nas as mulheres da casa com surfistas – e não só – que nas paredes de verga deixaram gravados os nomes e alguns recados. Assim, no menú, para além da habitual culinária indonésia, chinesa e internacional, pratos brasileiros podem ser pedidos. A escolha é limitada, mas é boa e sabe a comida da mãe. Feijoada com farofa, bife à milanesa, coxinha de frango e, para beber, caipirinha, da verdadeira, feita com aguardente de cana. Que eu bem vi as garrafas.
Em países como a Indonésia, outra coisa não se esperaria, o apoio às intervenção militar americana no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria é praticamente nulo. E não é por uma questão meramente religiosa, pois muitos dos contestatários não são muçulmanos. Rodrigo, por exemplo, natural das ilhas das Flores, é cristão, e tão pouco aprova a decisão do senhores Clinton, Bush e companhia. Pergunto-lhe se os recentes conflitos religiosos têm afectado a ilha de onde é natural. Diz que não e aproveita para lembrar que os casos de violência são localizados e que é injusto considerar a Indonésia como um país problemático marcado pelo conflito e a violência. E a verdade é que os resultados de dados recentemente recolhidos por uma instituição ligada à ONU mostram que os conflitos de carácter social encontram-se localizados em certas províncias e distritos apenas, muito embora o impacto social, político e económico se faça sentir em todo o País. «Os conflitos violentos na Indonésia destruíram a imagem do País a nível internacional com consequências bastante adversas para o turismo e os investimentos», afirma Rodrigo.
UM ARQUITECTO PORTUGUÊS
Jogajakarta é a capital cultural da ilha de Java e a mais popular da cidades indonésias. Fundada em 1755, Yogya, como é vulgarmente conhecida, foi foco de resistência contra o poder colonial holandês e após a Segunda Guerra Mundial desempenharia um papel importantíssimo na revolução que conduziria à obtenção da independência. Para além de centro cultural e artístico, Yogya é também um pólo universitário onde instituições prestigiadas instalaram as suas sedes. E, como a história não se apaga, são muitos os locais que nos fazem lembrar o período colonial, bem representado no museu dos coches local, o Museum Kereta Kraton. Mas era de arquitectura que vos queria falar.
Nas minhas deambulações pela cidade, estranhei serem relativamente poucos os edifícios com características arquitectónicas holandesas. Em contrapartida, muitas das fachadas e pórticos fizeram-me lembrar ex-libris macaenses como o Teatro Dom Pedro ou até o Leal Senado. Essa estranheza deveu-se ao facto de eu ter ido para ali com a lição por estudar. Estranheza que depressa se desvaneceu quando um condutor de becak (riquexó) me falou do «arquitecto português que concebera o Palácio da Água». O Taman Sari indicado no mapa que obtivera no posto de turismo e agora consultava, pois era minha intenção explorar esse complexo de canais, piscinas e palácios construídos, entre os anos 1758 e 1765, no interior do Kraton – a residência dos sultões onde vivem 25 mil pessoas com lojas, mercado, escolas e mesquitas próprias.
Nem me dei ao trabalho de recolher mais informações sobre o pretenso arquitecto português junto do homem do riquexó, já que atribuí a simpática menção ao facto de ele saber que eu era português. “Fosse eu holandês”, pensei para os meus botões, “seria outra a nacionalidade do autor do Taman Sari”. Porém, já no interior do complexo, bastante danificado por guerras e terramotos, mais uma vez me vieram com a do arquitecto português responsável pela obra. Desta feita mostrei mais interesse, até porque o meu interlocutor desconhecia a minha nacionalidade. Embora não soubesse o nome desse personagem histórico, lá me foi dizendo que representantes do Governo português tinham visitado o palácio e muito desse trabalho de restauro que eu via tinha sido financiado por capitais portugueses.
À semelhança do arquitecto fantasma, devem ter estado ao serviço dos sultões outros portugueses, pelo menos a avaliar pela traça tão familiar em vários dos edifícios da cidade.
Joaquim Magalhães de Castro