Maamuni e o Elefante Branco
Se verdade é que nos rios e ao longo da costa os mogóis sempre fracassavam frente aos arracaneses, convém não esquecer que o potencial dos primeiros – com um exército com mais de setecentos mil homens, admirável montante para a época – era infinitamente superior. A ambição de Thiri-thu-dhamma ia muito além da simples ampliação dos seus domínios: ele pretendia conquistar toda a Bengala. Ora, como poderia almejar semelhante coisa se não tivesse o apoio dos portugueses, mesmo que em contingente – umas centenas de homens – bastante limitado? Fosse como fosse, lutar contra o império mogol parecia ser propósito impraticável. Mesmo assim, Thiri-thu-dhamma estava disposto a correr o risco. Não era ele, afinal, o supremo guardião do Maamuni (o Buda) e Senhor do Elefante Branco e, como tal, o maior rei budista daquela região? Maior que o rei do Ceilão, maior que o rei do Sião, maior que o rei da Birmânia. Mais. Thiri-thu-dhamma acreditava que lhe caberia a ele o papel de “redentor do mundo”. Ou seja, esperava poder vir a reencarnar como Buda e assim unir o mundo desunido e a todos levar paz, felicidade e salvação. E só o conseguiria (saber se fora ele o escolhido) tentando algo de grandioso. Caso tivesse sucesso na cruzada contra o mogol muçulmano, então do seu destino seria senhor.
Tivera idêntico sonho o seu avô Razagri, que ao conquistar Pegu se apoderara do tão desejado Elefante Branco, agora ao seu cuidado. Também o rei birmane Bayinnaung idealizara em tempos algo do género. Nem um nem outro puderam cumprir tal desidério, porventura devido a pecados cometidos em vidas anteriores e ainda não expiados. Isso explicaria também o facto de o seu pai, Min-kha-maung, ter reinado dez anos sem nada ter concretizado. Atormentava-o pensar que também ele, quiçá, podia ser obrigado a recuar devido a “uma falha passada”. Nada tinha a perder se tentasse. O primeiro passo na sua longa ascensão rumo à glória universal implicava a derrota, em campo de batalha, de um imperador que tivesse a aparência de um “monarca universal”, mesmo que não tivesse os necessários atributos. Uma vez conquistada Bengala seguir-se-ia a Índia, a pátria de Buda. Fora à sombra de uma figueira sagrada que alcançara “o estado de iluminado”. Caso conquistasse a Índia todos os reis do mundo viriam reverenciar Thiri-thu-dhamma. Este aproveitaria então para os coroar de novo e, depois de os endoutrinar nos nobres Oito Caminhos, deixá-los-ia partir para que pudessem governar as suas nações “em paz e amor”. Esta era a visão do estranho Thiri-thu-dhamma. E para a conseguir materializar urgia conseguir o apoio dos “estrangeiros brancos de Goa”, cuja perícia como marinheiros, mosqueteiros e artilheiros excedia em muito a dos melhores elementos do exército mogol. O que o monarca arracanês desconhecia era que aos portugueses movia-os preceitos similares aos seus. Thiri-thu-dhamma ignorava que o Papa delegara nos portugueses, via Padroado Português do Oriente, a evangelização de toda a Ásia, e era também objectivo do Santo Padre que todos os reis do mundo viessem à Cidade Santa e dela partissem prontos a disseminar pelo mundo a Fé de Cristo. Desconhecia tudo isso o monarca arracanês, para quem os portugueses não passavam de simples pagãos desconhecedores dos ensinamentos do Buda, um conjunto de oito práticas que correspondem à quarta nobre verdade do Budismo. Também é conhecido como o “caminho do meio” porque se baseia na moderação e na harmonia, sem cair em extremos.
Antes de deixar o reino de Mrauk-U, o padre João Cabral fez uma importante descoberta. Quatro anos antes estivera no Tibete e dera-se conta que os seus habitantes não eram hindus, antes tinham uma religião muito sua. Não sabia que religião era essa, mas em Mrauk U constatou que as imagens nos pagodes se assemelhavam às que tinha visto no Butão e no Tibete. Também as vestes dos monges eram iguais, mudando apenas a cor do pano. Uma série de outras semelhanças com que se confrontou levaram-no a concluir, embora erradamente, ser a religião do Arracão idêntica à do Tibete. Como se sabe, embora ambas sejam nações budistas, o Tibete segue a escola Mahayana, enquanto Arracão a escola Hiryana, de resto como acontece no Camboja e no Sião. Embora fosse incapaz de fazer tal destrinça, Cabral seria o primeiro europeu a correlacionar estas duas escolas e a constatar que, além do Maometismo e do Hinduísmo, havia uma terceira religião na Ásia.
João Cabral deixaria a cidade de Mrauk-U, rumo a Goa, em Janeiro de 1633. Tinha na altura pouco mais de trinta anos. Era jovem ainda. Muitas outras aventuras e responsabilidades o esperariam. Em Goa viria a exercer o cargo de reitor da Casa Professa dos Jesuítas antes de viajar até Malaca. Seguir-se-iam as ilhas da actual Indonésia, o Vietname, o Japão – onde foi vice-provincial, de 1645 a 1646 – e Macau onde exerceu, por duas ocasiões, a função de vice-reitor do Colégio de São Paulo. Esse período da sua vida daria um outro relato de aventuras que, por ora, não se enquadra no contexto destas crónicas.
Joaquim Magalhães de Castro