O Relativismo – III
Voltamos às questões e dissidências na Igreja, às heresias e divisões, às crises, externas e internas. E eis de novo o relativismo. Este que é uma das correntes filosóficas que mais tem alastrado na sociedade contemporânea. Neste «nosso mundo [que] é o teatro de uma batalha entre o bem e o mal», como referia Santo Inácio de Loiola, fundador da Companhia de Jesus, nos seus “Exercícios Espirituais”, recordado por Bento XVI à XXXV Congregação Geral da Companhia de Jesus (Jesuítas), em 2008, que ainda acrescentou, nessa alocução, que «(…) estão em acção poderosas forças negativas, que causam aquelas dramáticas situações de subjugação espiritual e material dos nossos contemporâneos (…)». Bento XVI disse ainda, mais analítico que profético, no mesmo contexto, que «estas forças manifestam-se hoje de muitas formas, mas com particular evidência através de tendências culturais que se tornam com frequência predominantes, como o subjectivismo, o relativismo, o hedonismo e o materialismo prático».
É desta forma sábia e límpida, como só Bento XVI sabe, que se pode definir o relativismo, como uma entre outras “tendências culturais”, que é uma designação mais esclarecedora, provavelmente, que “correntes filosóficas”. Porque é de uma tendência, cultural e civilizacional, social, que falamos quando aludimos ao relativismo, que atinge um domínio já para lá da Filosofia ou da teoria de pensamento, um enraizamento cultural e social, capilarizando a sociedade.
Não foi também, já há muito tempo, em Tessalónica, na Grécia, que São Paulo – e seguimos novamente na esteira de Bento XVI – contava aos que o ouviam que o seu propósito de anunciar o Evangelho era para os «encorajar e advertir a caminhar de maneira digna de Deus, que vos [lhes] chama ao Seu reino e à Sua glória» (1 Ts., 2, 12), acrescentando ainda que «por isso, damos continuamente graças a Deus porque, tendo recebido a palavra de Deus que nós vos anunciamos, vós a acolhestes não como palavra de homens, mas como ela é verdadeiramente, como palavra de Deus, que também actua em vós que acreditais» (1 Ts., 2, 13).
Na Palavra de Deus não há relativo, nem relativismos, é antes e acima de tudo a forma de caminhar para Ele, sem adendas nem glosas, reduções ou mitigações. Sem relativizar…
A DITADURA DO RELATIVISMO
É esta a expressão que Bento XVI usou para caracterizar essa tendência cultural dominante, ou o regime filosófico imposto ao mundo contemporâneo, que é o relativismo. Como, aliás, continua a fazê-lo o Papa Francisco. Há, da parte destes Pontífices, uma exortação contínua para se responder e combater esse dito sistema filosófico, já classificado como um sintoma de uma sociedade que abdicou do pensamento. Uma tendência que mortifica a razão e afunda a democracia, como lembrava o Papa alemão. O “ser humano não pode conhecer com segurança nada além do campo científico”, pregava o racionalismo, nos seus limites, abdicando, assim, de considerar os limites humanos e apenas focado em elevar a razão sobre todas as coisas, “transformando-a em uma deusa”. Por isso se tornou inadequado, explicou Bento XVI, caindo-se por isso naquilo que definiu como uma ditadura da razão, do racionalismo.
Com a devida permissão, voltemos uma vez mais a Bento XVI, que na missa “Pro Eligendo Romano Pontifice”, em 18 de Abril de 2005 – um dia antes do conclave o eleger como futuro Papa e ainda como cardeal e teólogo Joseph Ratzinger – assim alertou na homilia, quase como apresentando um manifesto de um eventual programa e linhas de acção, que concretizaria depois como Pontífice: «A pequena barca do pensamento de muitos cristãos foi muitas vezes agitada por estas ondas lançada de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, até à libertinagem, ao colectivismo radical; do ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí adiante. Cada dia surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo acerca do engano dos homens, da astúcia que tende a levar ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar “aqui e além por qualquer vento de doutrina”, aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades», disse.
Cremos que a expressão “ditadura do relativismo” se ajusta, sem dúvida, a estes tempos. Relativismo porque a ideia central é a ausência da verdade absoluta, que é até uma teoria mais antiga, do século XVII. Mas que é também ditadura, pois é proibido sustentar o contrário, hoje em dia quase se assume como verdadeiro que o único absoluto é o relativo. É o primado do… relativismo! Todos têm um direito a tudo (até ao erro), menos o direito a pensar que essa liberdade de errar é mera tolerância. Tudo, então, é relativo, excepto o próprio relativismo, que é absoluto e é em si até considerado um princípio. Já que a verdade é relativa, qualquer um é livre para acreditar no que quiser, menos defender que ela seja absoluta. Se o relativismo é um erro, pior ainda que não admite que a ele alguém se oponha.
É de certa forma uma consequência lógica dos ideais iluministas. Assim podem-se até eliminar os adversários deste “princípio”, semeando-se a ideia de uma contradição. Sim, pois se a liberdade é absoluta e a verdade relativa, portanto, todas as ideias são igualmente aceites, por que é que os defensores da liberdade relativa e da verdade absoluta são perseguidos? Então a liberdade não é tão absoluta, nem a verdade é tão relativa! Confuso? Experimente-se o relativismo e ver-se-á a confusão… Os mais radicais dizem que o que está por trás disso não é o amor à liberdade, mas provavelmente o “ódio” à verdade. Sob a capa de uma liberdade absoluta esconde-se a mais terrível das tiranias… a ditadura do relativismo… Mesmo os que defendem a verdade relativa nela acreditam. Porque pensam, lá no fundo, que essa verdade relativa é absoluta, negando mesmo a liberdade a seus opositores.
A sensação que existe é estão, pois, duas “forças” em antagonismo, profundo. Ou sejam, o bem e o mal, a luz e as trevas. Ou seja, um conflito entre os que defendem que a verdade é absoluta e a propõem assim aos outros, sem medo, e os que também acham que é absoluta, mas que disfarçam de relativa, e, desse modo, a impõem a todos, ou difundem capilarmente, de forma até subliminar….
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa