A frenética babel de Daca
Daca recebe-nos, logo à saída do aeroporto internacional de Hazrat Shah Jalal, como só ela sabe receber. Com um trânsito infernal, misto de riquexós a pedal ou motorizados, um dos quais verdadeira gaiola para transporte de crianças em idade escolar, e autocarros e camiões de chapa amolgada, tinta raspada e meio apodrecidos. E é claro, um mar de peões, quantos deles peões-de-Brega evitando o touro (leia-se viaturas), todos em busca de espaço para passar. Há ainda militares de camuflado azul mesclado com o familiar verde azeitona, sinaleiros à sombra de guarda-sóis, agentes da Tourist Police (ou lá o que isso significa num país com baixo índice de visitantes) montados em potentes motos a fazer inveja aos comuns agentes, camaradas seus de bastão em riste que de quando em vez zurze nos traseiros e espáduas dos mais incautos. Buzinadelas são mais que muitas e tão constantes quanto o constante pára-arranca. Cores, essas de todas as matizes e variadas cambiantes. Ouço-me dizer: “Eles têm um jeito de se evitarem uns aos outros. Uma espécie de jogo de cintura”. E não é que têm mesmo!
Os prolongados engarrafamentos que de uma forma ou outra todos experimentamos no estupor do dia à dia, atingem aqui uma dimensão inimaginável. Aproveitam, condutores e passageiros, para mitigar a sede com golos de água, recorrendo a uma técnica que evita o toque dos lábios no gargalo da garrafa. No decorrer de tão delicada operação há quem humedeça o cabelo passando por ele o precioso líquido como se fosse gel.
Nos exíguos espaços entre as filas paralelas criadas pelos centos e centos de viaturas, vários transsexuais, os hijras, pedem uns trocos, insistindo com toques nos vidros das janelas quando os condutores os ignoram. Aos hijras muitos atribuem poderes sobrenaturais e o Estado, à semelhança do que acontece na Índia e no Paquistão, reconhece-lhes o estatuto de terceiro género, além do masculino e do feminino, com direito a dados bem discriminados nas cédulas de identificação.
Os anúncios, quais estendais nas paredes dos edifícios, incitam, entre outras coisas, a ir estudar no estrangeiro, sugestão à qual apenas uma ínfima parte dos milhões de pessoas que aqui vivem pode ponderar. Em Daca tudo se transporta e de tudo se carrega. Às costas, de padiola ou dando insistentemente ao pedal. Vale-lhes o raso terreno. Automóveis e furgonetas ensaiam slalons entre milhares de riquexós de múltiplas cores e motivos florais gravados em chapa prateada. São, sem dúvida, o meio de transporte mais comum.
Por ruas se distribuem os diferentes ofícios e nos espaços abertos improvisam-se campos de futebol e de críquete, o desporto nacional do Bangladesh.
O calor é infernal. Impossível manter uma camisa seca, tal é a quantidade de suor expelido.
João de Barros insere pela primeira vez um mapa de Daca na sua obra Décadas da Ásia (1550), e há conhecimento de comunidades lusas ali estabelecidas pelo menos desde 1580. Assinalava, seis anos depois, o viajante inglês Ralph Fitch, o envolvimento dos comerciantes portugueses no transporte de arroz, algodão e produtos de seda.
Resultado de um prolongado trabalho de missionação, sobretudo por parte dos agostinhos, várias igrejas seriam erguidas. Em honra da Nossa Senhora do Rosário, da Nossa Senhora da Piedade, de São Nicolau de Tolentino e do Espírito Santo.
Um outro visitante estrangeiro de passagem pela cidade, em 1682, menciona a existência de 600 homens de armas de origem portuguesa, designados como “topazes”.
Até à chegada dos mogóis, em 1608, Daca foi sucessivamente gerida por governadores turcos e afegãos, representantes do sultanato de Deli. Até então, e ainda no início do reinado do imperador Acbar (1556-1605), Daca era referida como simples posto militar, ou thana, na língua local. Durante o vice-reinado do general mogol Shaista Khan a cidade viria alargada a sua área de forma considerável, ao ponto de se transformar numa das maiores e mais florescentes urbes do subcontinente indiano, centro do comércio da musselina, um tipo de pano bastante leve e transparente comummente utilizado na confecção da roupa feminina. Embora o termo “musselina” nos remeta para um dos principais locais de venda – a cidade iraquiana de Mossul – esse produto provinha do subcontinente indiano. De Masulipatão, na província de Andhra Pradesh (ocupada pelos portugueses entre 1598 e 1610), mas sobretudo da região de Bengala.
Seria durante a regência de Khan que muitos outros portugueses, até então residentes em Chatigão e em Arracão, decidiriam estabelecer-se em Daca num lugar doravante, e até aos dias de hoje, designado Ferringhi Bazaar. Havia-os, em toda a região, de vários géneros e profissões, inclusive corsários acoitados na ilha de Sundiva (Sandwip) que ao longo de todo o século XVII aterrorizaram as costas da região de Noakhali. Muitos deles casar-se-iam com as mulheres da região convertendo-as no processo ao Catolicismo. Ainda hoje, os cristãos de Noakhali reivindicam origem portuguesa e há resquícios da nossa língua nos vários dialectos locais.
Joaquim Magalhães de Castro