Bengala e o Reino do Dragão – 40

O Horizonte Perdido

É muito provável que James Hilton, autor do romance “Horizonte Perdido”, escrito em 1933, tenha tido acesso a algumas das cartas enviadas pelos jesuítas portugueses no já distante primeiro quartel do século XVII, fosse a “Relação” de Cacela, a missiva de Cabral ou as cartas de António de Andrade, esse o verdadeiro pioneiro na região himalaica. Atente-se à seguinte passagem da obra do escritor britânico: “O mosteiro, no entanto, tinha mais a oferecer do que simples exibições de chinoiserie. Uma das suas características, por exemplo, era uma biblioteca muito agradável, alta e espaçosa (…). Conway, após uma rápida olhadela a algumas das estantes, encontrou motivos de sobra para se surpreender. A melhor literatura do mundo estava lá, ao que parecia, assim como uma grande quantidade de coisas abstrusas e curiosas que ele era incapaz de avaliar. Abundavam volumes em inglês, francês, alemão e russo, e havia grandes quantidades de escritos chineses e de outros idiomas orientais. Uma secção que o interessava particularmente abrangia os estudos tibetanos, se assim a podemos designar; Conway notou ainda várias raridades, entre elas o Novo Descobrimento de Gran Cataio dos Reinos do Tibete, de António de Andrade (Lisboa, 1626); a China, de Athanasius Kircher (Antuérpia, 1667); a Viagem de Thevenot à China, dos padres Grueber e d’Orville; e o Relazione Inedita di un Viaggio al Tibet, de Beligatti”.

O prólogo e epílogo do “Horizonte Perdido” são narrados por um neurologista que janta em Berlim com um amigo romancista chamado Rutherford. Um dos tópicos da conversa é Hugh Conway, cônsul britânico no Afeganistão, que desaparecera em circunstâncias estranhas. Rutherford revelará mais tarde ao neurologista que descobrira Conway num hospital missionário francês em Chongqing, na China. Antes de desaparecer novamente, o inglês conta a sua extraordinária história a Rutherford, sendo esse o cerne do “romance dentro do romance”. Vamos a ele. Maio de 1931. Na Índia do Raj britânico oitenta europeus são evacuados para Peshawar devido a uma revolução em curso. No avião do marajá de Chandrapore seguem Hugh Conway; Mallinson, o jovem vice-cônsul; Barnard, um norte-americano; e uma missionária britânica, Miss Brinklow. O avião é desviado e conduzido rumo ao Tibete. Após uma aterragem forçada, o piloto morre, não sem antes aconselhar os passageiros a buscar abrigo no mosteiro próximo de Shangri-La, sendo estes resgatados por um monge local. O mosteiro com que se deparam possui modernas instalações (aquecimento central, banheiras fabricadas em Akron, Ohio, uma grande biblioteca, um piano de cauda, um cravo) e abundância de alimentos cultivados num fértil vale. Apesar disso, Mallinson deseja partir, embora os outros mostrem vontade de permanecer em tão agradável local. Vive no mosteiro, Lo-Tsen, uma jovem manchu pela qual se apaixonam Mallinson e Conway. Este seria solicitado para uma audiência com o lama principal, que lhe diz que o mosteiro fora construído por um monge católico luxemburguês chamado Perrault, no início do século XVIII. Desde então, muitos foram os que encontraram o caminho até ao vale de Shangri-La e ali permaneceram, tendo assim travado o seu processo de envelhecimento. Porém, se ousassem sair do vale, logo envelheceriam rapidamente e morreriam. No decurso da conversa, Conway apercebe-se que o dito lama é Perrault, agora com 250 anos de idade, e este, numa audiência posterior, revelar-lhe-á que, finalmente, está prestes a morrer e, por isso, quer oferecer ao cônsul a liderança do mosteiro. Entretanto, Mallinson planeia sair do vale com carregadores e Lo-Tsen, mas como não pode encetar tão perigosa jornada sozinho, convence Conway a acompanhá-lo e a ajudá-lo. Assim termina o relato. Em jeito de epílogo, diz-nos Rutherford que a última vez que avistara Conway, este preparava-se para regressar a Shangri-La. Rutherford completa o seu relato dizendo ao neurologista que durante a tentativa de encontrar o cônsul inglês deparara com o médico que o havia tratado em Chongqing. O médico dissera-lhe que Conway fora trazido por uma mulher chinesa, que estava doente e morrera pouco depois. «Era a pessoa mais velha que alguma vez já tinha visto», garantira o médico, sugerindo que se tratava da Lo-Tsen, envelhecida drasticamente após a sua saída de Shangri-La. O narrador questiona-se, no final do livro, se Conway pôde ou não encontrar o caminho de regresso ao seu paraíso perdido.

Resumido o enredo do “Horizonte Perdido” cedo nos apercebemos que a personagem Perrault é claramente inspirado na figura do padre António de Andrade, ou até na do seu companheiro de jornada, o leigo Manuel Marques, pois este ficou pelo Tibete e aí faleceu, tal como acontece com o fictício e sibilino lama principal do mosteiro de Shangri-La. Ainda hoje estou para perceber porque razão optou Hilton por atribuir ao seu personagem a nacionalidade luxemburguesa, como bem se sabe uma nação de grandes navegadores e exploradores de continentes inóspitos! Por que não lhe conferiu ele a lusa nacionalidade, prestando dessa forma tributo a quem lhe serviu de inspiração? Enfim, olhando a coisa pelo lado positivo, pelo menos não nos impingiu um inglês ou um francês, como é costume. Há ainda um outro sinal que indica terem sido os escritos dos jesuítas portugueses a base inspiradora do “Horizonte Perdido”. Face às comodidades do mosteiro, os recém chegados logo deduziram haver por ali muito dinheiro. Dizia o norte-americano Barnard: «– Você sabe, Conway, este lugar não é administrado sem muito dinheiro». Retorquiria, em jeito de resposta, Mallinson: «– O lugar todo é um mistério confuso. Eu diria que eles têm potes de dinheiro escondidos, como o faziam os jesuítas».

Quanto à designação Shangri-La, bem, essa, como se sabe, tem servido para dar nome a cadeias de hotéis, spas e restaurantes, sendo já várias as regiões do mundo, no universo himalaico e fora dele, a reivindicar tão apetecida posição geográfica.

Joaquim Magalhães de Castro

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