Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LXXVII

O Modernismo

Estamos na segunda metade do século XIX. A Igreja vivia tempos difíceis como a sociedade vivia também. O passado colidia em tudo com o presente, ou vice-versa. O futuro nascia todos dias num berço agitado e em diatribe. A tradição lutava por sobreviver. O progresso lutava com a tradição para se impor. Parecia que o mundo não se entendia no seu devir. Nas relações humanas assim parecia. A política queria dominar a fé. A Igreja lutava e parecia querer perpetuar o velho status quo do Antigo Regime. E ao mesmo tempo abria-se ao mundo, empenhava-se em causas e lutava pela dignidade humana esquecida na marcha do progresso material. Já aqui vimos, o Kulturkampf trouxe ainda mais dissidências, no último quartel do século XIX, a partir da Alemanha unificada. Entretanto, a partir de finais de 80 daquele século, muitos dos seus decretos, desunificadores, eram revogados. Mas outras questões e debates surgiam, entretanto, como o Modernismo.

Não se poderá afirmar que o Modernismo foi um movimento, unificado ou dirigido. Antes foi uma tendência, heterogénea, uma corrente difusa até nas suas vias, mas que se unificava na defesa da interpretação da religião à luz do pensamento científico moderno. Nesse sentido, proclamava também uma evolução do dogma na teologia católica, com vista à sua transformação, ou quando muito no aligeirar do seu peso absoluto e estanque. No fundo, procurava uma explicação moderna da religião, do seu aparelho dogmático e da moral, a partir do sentimento religioso próprio do ser humano e não tanto através dos acessórios e instituições. Os seus mentores visavam, pode-se dizer, uma conciliação da fé com as novas correntes filosóficas, modernas portanto, às vezes até com vias agnósticas e imanentistas, por exemplo, ou enquadrá-la no evolucionismo.

Estava-se em finais do século XIX. Foi nessa mesma época que despontou e se afirmou o Modernismo, que fará algum caminho até aos inícios do século XX. A história da Igreja refere como seus principais defensores os teólogos Alfred Loisy (1857-1940) e George Tyrell (1861-1909), considerados os seus ideólogos iniciais, tendo sido seguidos por outros, como Ernesto Buonaiuti, Dimnet e Albert Houtin.

A Bíblia não é infalível, o homem não está feito à imagem de Deus, não há milagres, nem nascimento puro e imaculado de Jesus, não há deidade, há que recusar a expiação e a culpa, não há nem haverá ressurreição, eram alguns dos slogans que os ideólogos desta corrente proclamavam. Nunca a teologia católica estivera tão perto do agnosticismo ou do ateísmo…

 

A tentação modernista

A Igreja e os seus dogmas deveriam ser considerados como instituições humanas, inseridas no contexto histórico próprio e passíveis, por necessidade – como as demais instituições e criações humanas – de serem revistas e modificadas. Não podiam ficar monoliticamente estanques e intangíveis. Em suma, assim proclamavam estes teólogos. Claro que a Igreja não ficou a assistir, logo interveio e se posicionou. Aliás, o termo “modernista” rapidamente se tornou pejorativo, tal a forma como os seus críticos o usavam. O Papa São Pio X (1903-1914) seria o maior crítico e adversário do Modernismo, resumindo-o a uma definição arrasadora, como “o conjunto de todas as heresias”… Pio X não quis nunca reconciliações com os teólogos modernistas e combateu a corrente de forma implacável, condenando-a categoricamente. Deus não podia ser retirado ou eliminado da vida humana, como pareciam querer os modernistas, recordavam os teólogos romanos.

O Modernismo radica a suas origens na anarquia intelectual que surgiu na Europa no século XIX, em França em particular e com destaque para os meios católicos, alguns sem um rumo definido e sem uma interligação, o que fez com se derivassem para extremos a partir dos quais surgiriam estes pseudo-renovos teológicos como o Modernismo. Leão XIII (1878-1903), o Papa “social” e com os olhos postos no mundo novo, mostrou sempre reservas em relação a essa anarquia intelectual, por ser geradora de teorias e movimentos radicais e que nada trariam de novo ou resolveriam o que fosse.

Por isso, no seu pontificado como no do seu sucessor, Pio X, o combate ao Modernismo impôs-se de forma inequívoca. A Igreja tomava uma posição firme perante a sociedade, cada vez mais influenciada por regimes populares e liberais, no plano político, e ideias difusas, ou confusas (para o senso comum) de índole anarquista e relativista, que faziam perigar convicções e a própria fé. O povo afastava-se da Igreja e aproximava-se da política, abandonava o adro e rumava às praças e às ruas, quase sempre em turbas desconhecedoras do essencial da sua luta ou das razões ideológicas que os moviam.

A publicação de “A Origem das Espécies” por Darwin em 1959 tinha reforçado a possibilidade de se conseguir uma explicação naturalista da origem e evolução do homem e das suas características, o que fazia com que Deus se convertesse numa hipótese, por seu turno. E que era desnecessária, para muitos evolucionistas. O “cocktail” composto pelo racionalismo, pelo subjectivismo e pelo relativismo, forjaram pois a base do Modernismo. Pio IX ao publicar o “Syllabus de Erros” (1864) – em apêndice à encíclica “Quanta Cura” – que condenava todos os erros da filosofia, ciência e da política dos tempos que se viviam, mais não fez do que proclamar a condenação do Modernismo (ao qual aponta 65 erros, por exemplo). Não o fez da melhor maneira e acicatou ainda mais os modernistas, fragilizando a posição da Igreja, que entrara num ciclo de perda de poder temporal e de territórios, confinando-se a Roma e sendo vergastada pelo Kulturkampf. A definição dogmática da infalibilidade papal e a tentativa de reforço do seu poder absoluto, da autoridade do seu magistério, foram gasolina para a fogueira que o Modernismo ateara, poder-se-ia hoje perscrutar.

Orientação herética do pensamento cristão ou síntese de todas as heresias e erros, o Modernismo fez parte do seu tempo, do contexto histórico do mundo de então, em particular da vida eclesial. Não se tratou de uma conspiração contra a Igreja, mas da evolução de um conjunto de ideias e teorias brotadas da teoria maior do evolucionismo, com o racionalismo e o relativismo a comporem o corpo de ideias, se assim lhe pudermos chamar. Nem sempre a Igreja soube, porém, combater ou mediar meças com o Modernismo, quando mesmo enquadrá-lo nos sinais dos tempos que se viviam e que estavam para vir. A adaptação intelectual e moral da Igreja ainda dura desde então, percebidos que foram esses sinais. Mas é difícil ainda conciliar essas ideias modernas, embora a Igreja aceite o desenvolvimento da doutrina, por exemplo, e dialogue com o mundo da ciência de forma activa.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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