O arco e a flecha
Estêvão Cacela traça-nos um retrato dos butaneses apresentando-os como gente branca, “ainda que a pouca limpeza com que se tratam faz que o não pareçam tanto”. O cabelo traziam-no comprido, cobrindo-lhes as orelhas e parte da testa, e o rosto estava desprovido de barba. E para se certificar que assim continuava faziam uso, com bastante frequência, de umas tenazes que traziam penduradas ao peito, “que só servem de arrancar tudo o que aponta”. O traje dos butaneses não diferia daquele utilizado por outros povos tibetanos, pois “os braços trazem despidos, e do pescoço até aos joelhos se cobrem com um pano destes de lã, trazendo mais outro pano grande por capa”. Usavam ainda cintos de couro “com chapas de muito bom lavor”, braceletes que traziam nos braços e “relicários que andam lançados a tiracolo”. Diz-nos o jesuíta que os butaneses costumavam andar descalços, embora houvesse quem usasse botas de couro, ou meias feitas em pano grosso, e como armamento utilizavam o arco e flecha, terçados “e adagas de ferro excelente, aos quais ornam com muita curiosidade e obra mui bem feita”.
Ainda hoje o tiro ao arco é a actividade desportiva mais popular entre os butaneses e encontra-se catalogada como “desporto nacional” desde 1971, altura em que o Butão se tornou membro das Nações Unidas. Torneios de tiro ao arco são efectuados ao longo do ano, sobretudo durante os feriados religiosos e nas festividades locais, daí que todas as aldeias possuam um espaço adequado à prática da actividade. Acredita-se que ela aumenta a concentração e contribui para o desenvolvimento psíquico, sendo ainda considerada uma forma ideal de socialização pois incentiva o bom relacionamento entre as pessoas.
Tivemos oportunidade, durante a nossa curta estada, de presenciar uma competição amigável entre amigos, ia já a tarde bem avançada. Impressionou-me a distância pré-estabelecida entre os arqueiros e o alvo – talvez uns 150 metros – e o reduzido tamanho deste, brilhante, uma verdadeira palete de cores. Pareciam estar bastante seguros de si os competidores, de várias idades, nitidamente animados pela bebida, já que o consumo de álcool é bem aceite nessas ocasiões. Arcos e flechas – estas, encimadas com penas de aves – celebram o bambu, e as aljavas querem-se de madeira, com cobertura de couro e uma cinta de tecido. O primeiro membro de uma equipa (habitualmente com treze jogadores) a marcar 25 pontos é declarado vencedor, embora a façanha possa levar uma eternidade a obter. Noutros tempos jogos havia que se estendiam ao longo de um mês!
Antes de uma sessão de tiro ao arco os concorrentes são aconselhados a não passar a noite com as esposas para assim alcançar um maior nível de concentração e as equipas recorrem frequentemente a astrólogos (munidos de fantoches que simbolizam arqueiros) capazes de lançar “maus-olhados” aos adversários. São também eles quem determina o local onde decorrerá a competição. Prepararam as mulheres os seus melhores manjares e asseguram uma presença contínua de chá com manteiga e cerveja. Compete-lhes ainda (assim manda a tradição) animar os maridos com cânticos fortemente simbólicos, quando não é gesticulações e insultos de teor humorístico. Há um provérbio butanês que afirma: “O tiro ao arco está para os homens como as canções e as danças estão para as mulheres”. Arqueiros concorrentes rivais envolvem-se em verdadeiras batalhas verbais, exibindo no decorrer das mesmas insuspeitas habilidades intelectuais. Exaltam a qualidade das próprias flechas, prestam conselhos e encorajamento mútuo, e rebaixam os oponentes recorrendo a expressões literárias das mais variadas matizes, as designadas “kha hangar”. Na verdade, o tiro ao arco é mais do que um desporto. É uma forma de exorcismo. Diz-me um dos jogadores: «– Ao jogar, todos os meus pecados e más acções desaparecem». Pergunto-lhe: «– É uma forma de limpar a alma, é isso?». «– Não», diz ele, «– se jogarmos, a nossa má sorte, os demónios que se apoderam de nós, vão embora».
Ao longo da história do Butão, arco e flecha foram importantes utensílios proporcionadores de meios de sobrevivência nas terras altas, fosse na guerra ou nas caçadas, e sempre estiveram presentes nos mitos e lendas do Butão, como o comprovam as imagens de divindades que vemos retratadas nas paredes de mosteiros e eremitérios exibindo arcos e flechas – itens obrigatórios em toda a cerimónia religiosa ou ritual butanês, e presentes nos santuários dedicadas às divindades locais, onde as flechas são ali deixadas como ofertas. Arco e flecha constituíam outrora o meio de defesa por excelência da população aquando das invasões tibetanas ou nos períodos de crise interna, altura em que eram criadas milícias entre os séquitos dos senhores locais comandadas por um “dapon”, ou seja, “chefe da flecha”. O título continuou a ser usado entre os quadros militares após o estabelecimento da monarquia butanesa, em 1907. Transmitido de geração em geração, o tiro ao arco é, ainda hoje, a actividade desportiva favorita do rei do Butão.
Joaquim Magalhães de Castro