Bengala e o Reino do Dragão – 27

O Vale de Paro

Regressemos à viagem e aos seus protagonistas, que deixámos ficar às portas da antiga capital. Ao chegar a Paro, ao vigésimo quinto dia do mês de Março, festa da Anunciação, “dia em que o verbo se fez carne”, os missionários mostraram-se maravilhados com o vale, “mui formoso, largo e aprazível”, que se deparava à sua frente e se espraiava “entre serras que de uma e outra parte o vão acompanhado, elas em si alegres à vista e mui acomodadas, as searas de trigo e arroz de que então estavam cobertas”. Cacela chama-nos a atenção para os dois rios bordejados de salgueiros – “com muitas levadas de águas que das ribeiras saem” – e mostra-se bastante impressionado com a arquitectura local e o peculiar ordenamento urbano. Atentemos à carta: “Como campo começam os edifícios das casas mui grandes, e altas que comummente são de três, quatro, cinco sobrados, de paredes mui grossas, com janelas e varandas que as formoseiam”.

O panorama que se apresenta aos nossos olhos coaduna-se na perfeição com a descrição de Cacela. A única excepção são as estradas asfaltadas e os telhados de zinco, uma desilusão para quem esperava mais empenho, de quem de direito, quanto à preservação da genuinidade da arquitectura local. Breves passeios pelos campos de arroz e de trigo que camponeses de sachola e enxada em riste fazem questão de manter férteis, implicando os ditos um atrevido assomar às portas de casas particulares – correndo eu o risco de poder ser inoportuno – comprovam, não obstante, o excelente estado e a beleza destas habitações com a parte inferior feita de adobe e a superior de madeira. Tabuado, todo ele, esculpido e encaixado um no outro sem recurso a qualquer prego. O acabamento dos telhados é executado e pintado à mão. São casas de um, dois e até três andares e, como salienta Cacela, “não estão estes edifícios em forma que façam ruas; ficam divididos uns dos outros em todo o campo e pelos pés das serras em forma que fazem uma cidade, mas tão comprida que só o que andamos e vimos nelas são três léguas”. Ilustram as paredes de algumas dessas casas, mormente junto às portas e janelas, desenhos de pessoas ou animais, sugerindo uma qualquer função protectora. Falos de diferentes tamanhos e de diferentes feições, chamam, desde logo, a atenção.

Sempre atencioso, informa Sangay que a sua existência se deve ao monge Drukpa Kunley (1455-1529), popularmente conhecido como “o santo louco” ou “santo da fertilidade”. Assumidamente mulherengo – dispensamo-nos de apresentar aqui, por razões óbvias, o corolário das suas façanhas sexuais – e apreciador de uma boa pinga, Kunley, rompendo com os cânones sociais da época, recorria a métodos de ensino do Budismo nada ortodoxos, considerados até blasfemos. A ruptura com as entidades eclesiásticas do reino foi só uma questão de tempo. Mas se melindradas estas ficaram, fascinada se mostraria a turba do comum dos mortais que prontamente aderiu à prática. Assim se propagou o hábito de pintar falos, alguns deles alados, nas fachadas e beirais dos lares de modo a expulsar os espíritos malignos e a subjugar os demónios. Talvez devido ao embaraço que poderiam causar, a explícita arte seria desencorajada nos centros urbanos e ao largo se manteve dos templos e dzongs comunitários, locais de residência celibatária de monges e monjas.

O mosteiro de Chimi Lhakhang, perto de Punakha – alegadamente construído pelo “santo louco” – é o local de origem dos esotéricos símbolos. Visitam-no hoje, em busca de fertilidade, não só mulheres butanesas, mas também estrangeiras, sobretudo japonesas. Aliás, no Japão o culto fálico, intimamente agregado à fecundidade, está bastante difundido na doutrina xintoísta, havendo vários templos a ele dedicados. Animam a Primavera festivais como o da cidadezinha de Komaki, a norte de Nagoya, com sacerdotes xintoístas a tocarem bizarros instrumentos musicais e um sem número de figurantes que, findo o desfile, sorvem saqué de um falo de madeira com 280 quilos de peso e quase três metros de comprido.

No que à região himalaica diz respeito, o culto fálico era parte integrante da religião Bon – muito antes de o Budismo se ter transformado em doutrina estatal – e estava presente em todas as liturgias. Compreensivelmente, por decoro, nada nos diz sobre o assunto o padre Cacela, ao contrário do que fizeram outros em seu lugar e em situações similares. Normal era que as tivesse condenado, como seria plausível tendo em conta a sua formação moral, sendo mais do que certo que com tal realidade foi por diversas vezes confrontado.

Quanto à população da cidade, nada que se aproxime do exageradíssimo número apresentado por Estêvão Cacela. Hoje, o distrito de Paro conta apenas com quinze mil almas, habitando a núcleo da cidade umas três mil pessoas, se tanto. Era de maior grandeza no século XVII, pelo menos a acreditar no depoimento do português, descontando, é claro, o seu exagero. Escreve Cacela: “a gente parece inumerável e lançada à conta, a menos que ali vivera, hão de ser mais de quinhentas mil almas, ao que ajuda o modo que comummente têm de morar naquelas casas, porque em cada uma delas há muitos moradores divididos pelos sobrados e repartimentos que para isso fazem”.

Joaquim Magalhães de Castro

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