Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LXV

O Despertar Religioso do Século XIX – I

Entre revoluções e restauração, assim poderíamos qualificar os novos tempos. Em que o tempo começou a andar mais depressa e era preciso acompanhar. Ou perder o tempo. Falamos dos alvores do século XIX, da Revolução Industrial e das revoluções liberais, das independências americanas e da queda do Absolutismo. Tudo era diferente. E era mais rápido. As revoluções liberais, políticas, abalroaram indelevelmente os alicerces do Antigo Regime, ferindo-o de morte. O Absolutismo, ou autoridade absoluta, direito divino dos reis, privilégios de classes e a preponderância cultural, social da Igreja, todos estas marcas do Antigo Regime seriam gradualmente substituídas então por uma nova atitude, mais igualitária, baseada no sufrágio universal, em eleições directas, além da promoção de igualdade de classes. Estávamos nos alvores do século do confronto entre o Antigo Regime e o mundo novo, ou das “coisas novas”, dos modernismos. O choque foi intenso, dramático até. Para a Igreja, definitivamente tudo começava a mudar, irreversivelmente…

Uma das marcas desta mudança é o anticlericalismo. Que vinha já do século XVIII, dos ideais maçónicos, do Iluminismo também. Se novo não era como fenómeno, era-o na sua irradiação fulminante e na sua violência e brutalidade. O clero era atacado desde o Iluminismo como um grupo ignorante, favorável à superstição e à crendice, fomentando a intolerância e travando o progresso e toda e qualquer mudança. Por isso um dos ideais do Liberalismo será a educação, a promoção do ensino e da escolaridade. Para tal, será preciso retirar este vector social das mãos do clero, de forma a que este não influenciasse mais na sociedade e na cultura. A exaltação da liberdade de consciência, um mote da Revolução Francesa, bem como a liberdade de ensino, de pensamento e de imprensa, serão uma das bandeiras deste renovado anticlericalismo liberal. A Igreja era cada vez mais a confluência de tudo o que a burguesia liberal odiava, com esta a abraçar a Maçonaria e a agudizar o seu anticlericalismo como marca de classe. Os autores mais lidos eram anticlericais, logo essa burguesia o era também por mimetismo.

Depois vem outra dimensão liberal que vai acrisolar ainda mais o anticlericalismo: a questão social. O mundo operário que nascia com a Revolução Industrial e o êxodo rural para as cidades que surgiam ou cresciam em torno das fábricas que enxameavam pela Europa, toda uma classe que despontava, defendia que a Igreja historicamente era uma aliada dos velhos capitalismos e poderes fundiários, terra-tenentes e monopolistas, das velhas aristocracias abastadas e castelãs, todos claro considerados pelo operariado como opressores e contrários à igualdade e à liberdade. A Igreja era a base cultural de todo esse sistema antigo, a justificação e o rosto tido como mais visível. Daí o anticlericalismo ter atingido as massas populares, onde conheceu posições mais acirradas, principalmente nos meios anárquicos.

 

A RESTAURAÇÃO RELIGIOSA

Mas este anticlericalismo social foi sendo desmontado, mais facilmente que o anterior, de carácter intelectual. A Igreja assumiu mesmo um projecto de mudança no campo social, como veremos, entendeu-se com os movimentos sociais e organizações, vestiu a farda dos operários e chorou as suas dores, apaziguando-as e dando-lhes um rosto cristão, um tónico de luta para encarar a nova guerra social. A “questão social”, principalmente a partir de 1848, será mesmo uma das frentes de acção da Igreja e uma das suas bandeiras no seu esforço constante de “aggiornamento” (actualização). Já o diálogo seria mais difícil com os intelectuais, ou os grupos mais instruídos, mais impermeáveis ao diálogo e a mudanças concertadas, respondendo a tentativas de aproximação com anticlericalismo brutal e radical.

Assim, paralelamente a esta redefinição e reposicionamento da Igreja nos novos tempos, surgiu, em crescendo, um movimento restauracionista que se caracterizava por uma visão integralmente religiosa da sociedade. Lutava-se contra a indiferença religiosa da sociedade, contra a decadência da autoridade episcopal, contra o declínio da instituição eclesiástica no seu todo em muitas regiões. Lutava-se acima de tudo contra a preponderância do mundo laico e liberal, cuja propaganda anticlerical era fortíssima e permitida, ao contrário dos esforços paralelos da Igreja, muitas vezes coartada e limitada na acção. Eram tempos de chumbo para a Igreja.

Há um despertar religioso no século XIX. Que se opunha aos efeitos práticos e sociais, culturais, etc., do Liberalismo e, a montante deste, do Iluminismo, cujas consequências se viviam ainda. Mas o despertar religioso, ou Restauração, era marcadamente conservador e tradicionalista, suspirando até pela Cristandade medieval, além de acreditar que a Revolução Liberal apenas sucedera devido à marginalização que se fizera à Igreja e pelo esmorecimento e esquecimento s dos princípios religiosos. Não por culpa da Igreja… Como dissera, em 1816, François-René Chateaubriand, um autor francês próximo deste movimento restauracionista, a monarquia e a sociedade restauradas, seriam religiosas… ou não! Era o apelo ao regresso aos alicerces da Igreja antiga, da sua força e preponderância.

Os restauracionistas ligavam o Liberalismo à ideia de revolução, estando esta associada a subversão e luta, pelo que todas as novas ideias e liberdades eram rejeitadas pelo movimento (restauracionista). O clero, a Igreja enfim, identificavam-se com o Restauracionismo, até porque tinham sido educados nesses moldes e partilhavam uma mentalidade e cultura comuns. A sua visão do mundo compaginava-se mais com o Restauracionismo do que com o Liberalismo, pois este último era essencialmente dissolvente e anti-religioso, ou pelo menos anticlerical. Mas o Antigo Regime estava enterrado, morto: o Restauracionismo não podia associar-se aos seus ideais, com o risco de não passar de uma bravata e enterrar-se com ele. Era preciso actualizar, modernizar sem perder a essência, era necessário e urgente dialogar e criar cordos, novas mentalidades. Mas tal parecia difícil, senão impossível.

Os liberais queriam dessacralizar a sociedade, a realidade social, com demasiada influencia da Igreja, que consideravam nociva e excessiva. Extirpar a Igreja era ordem do dia para o Liberalismo. Por isso, como dialogar com quem defendia tais pressupostos? Como fazer acordos com quem entendia que modernizar a sociedade só era possível através da sua secularização e laicização? Os liberais não defendiam que só haveria progresso e novidade sem Deus? O confronto entre Igreja, clero dir-se-ia, e o Estado e suas organizações, tornou-se frequente e a realidade quotidiana.

A presença da Igreja na sociedade era anacrónica, assuma-se, desajustada aos novos tempos, pois em termos formais e de acção, estava ainda moldada na Igreja antiga, na ideia de Cristandade, de outras mentalidades (feudais). Urgia uma nova mentalidade eclesial, em relação à política, sociedade, cultura, mais modesta, plural e aberta…

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *