A neurorradiologista de Sua Majestade
Deixou Macau aos dezoito anos de idade e rumou a Lisboa, onde viveu e estudou dois anos, antes de se fixar em Coimbra.
Corria o ano de 1968, Antonieta Galdino Dias embarcou para Hong Kong e depois para a Europa. No Velho Continente foi continuar os seus estudos. O futuro reservava-lhe uma carreira em Neurorradiologia, precedida do curso de Medicina na faculdade em Coimbra.
Nessa altura, Lisboa, e também Portugal, eram locais que apenas conhecia daquilo que o pai lhe falara, dos relatos dos conhecidos que ali já tinham estado, e do pouco que se lia nos manuais escolares.
Cinco anos após pisar o chão da “capital do Império”, Antonieta regressava a Macau, estava então no terceiro ano do curso de Medicina. Em 1973 pouco ou nada havia mudado na sua terra natal, facto que «era, de alguma forma, reconfortante» para a jovem estudante, segundo afirmou a’O CLARIM.
Esta macaense de gema nasceu em Junho de 1950 na freguesia de Santo António. Viveu na Rua da Restauração e estudou no Colégio Santa Rosa de Lima e no Liceu Infante D. Henrique.
Na primeira visita a Macau, em 1973, não se lembra de grandes mudanças, nem guarda grandes memórias, «era tudo muito igual ao que tinha deixado em 1968». Regressou ao território em 1979, algum tempo depois dos seus pais a terem visitado em Coimbra.
Das memórias de Macau lembra «uma jovem alegre e algumas amizades e locais familiares». Já de Portugal, no que respeita à sua chegada – confessou – «foi um choque. Era uma grande aldeia», comparando com a sociedade mais avançada de Macau.
Nos anos 60 e 70, «Macau era mais aberta e desenvolvida socialmente, muito por influência de Hong Kong», colónia britânica que Antonieta «conhecia muito bem das visitas que fazia a um tio que lá vivia». Este familiar viria a ser importante na sua formação, pois foi ele que lhe «incutiu o gosto pelo Inglês». O Português era ensinado na escola, o Cantonense era falado em casa – «a minha mãe é chinesa» – e o Inglês era usado para se expressar. Com alguma relutância reconhece que «o Português sempre foi a segunda escolha», o que acabou por lhe «causar alguns percalços na escola». No entanto, embora a língua de Camões não fosse a sua preferida, nunca deixou que tal a impedisse de ter sucesso na carreira profissional. Ainda hoje a maioria da literatura que tem em casa é no idioma de Sua Majestade. «É mais familiar e mais fácil de dominar», sublinhou.
Nos últimos anos tem visitado Macau com assiduidade. A última viagem ocorreu em Dezembro do ano passado. Normalmente aproveita o mês de Novembro, mas em 2017 decidiu passar o Natal e o Ano Novo com a família e os amigos de Macau.
Perguntámos o que sentia ao ver o desenvolvimento actual do território. «Sinto que nunca dali saí. Claro que houve mudanças que vieram com o progresso, mas ainda existem muitas zonas que continuam quase iguais ao que eram nos anos 60 e 70. Muitos lugares mantiveram as suas características ao longo dos tempos. A maioria das zonas antigas – as ruas e bairros onde andava quando era jovem – mantém as características originais», respondeu.
Ao falar dos anos da juventude, Antonieta recorda que tinha um grupo de cinco amigos, dos quais três (ela e mais dois) rumaram a Portugal com bolsas de estudo, sendo que os outros dois reprovaram e ficaram em Macau. Aliás, a vinda para Portugal apenas se concretizou devido à bolsa de estudo que lhe foi atribuída. «Caso não tivesse a bolsa, muito provavelmente teria ido estudar para outro país, quase certamente um país onde se estudasse em Inglês, língua que na altura dominava muito melhor que o Português», referiu. Em jeito de desabafo, reafirma que ainda hoje se sente «mais confortável a falar Inglês». Pouco lê e vê notícias em Português. É-lhe mais fácil ouvi-las em Inglês.
Em Macau tem ainda a mãe e um irmão, para além de uns primos do lado chinês da família. Quando está no território fala em Cantonense, a língua nativa da mãe e dos primos, e que o irmão também domina. À semelhança de Antonieta, o irmão fala Português «mas sente-se mais confortável a falar em Inglês».
Com uma vida passada em Portugal, estudos superiores completados em Coimbra e uma carreira profissional, quisemos saber se nunca colocou a hipótese de trabalhar em Macau. Relutante, revelou que fora convidada, mas recusou o convite. «Não tenho personalidade para trabalhar num local onde esperam que todos possam ser controlados». O facto de falar Cantonense fluentemente fazia com que não houvesse necessidade de ter a ajuda de tradutor, o que na sua opinião «apenas serve para controlar o desempenho profissional de quem vai de Portugal para trabalhar em Macau». Por outro lado, indo de Portugal iria ser submetida a um exame de aferição de competências profissionais, o que considera «descabido, mais não seja porque, quase sempre, esse exame é levado a cabo por pessoas com menos competências profissionais do que a pessoa que está a ser examinada».
Nunca irá esquecer um episódio com a sua irmã, uma magistrada que concorreu para Macau. Apesar de falar Cantonense e mais quatro línguas fluentemente, viu o lugar ser entregue a um juiz que só falava Português. «Isto porque esse juiz iria precisar de tradutor, enquanto que a minha irmã não…».
Por estas e por outras, Macau perdeu uma profissional de neurorradiologia!
João Santos Gomes