São José: O Natal do Pai Silencioso
José está no Presépio, mas o pai terreno de Jesus é figura secundária. Não “ouvimos a sua voz” nos Evangelhos, nem sabemos o que terá pensado perante o mistério do que lhe aconteceu na vida. No final do Ano de São José – terminou no passado dia 8 de Dezembro – fomos à procura de respostas sobre este “homem do silêncio” e de como ele terá vivido o nascimento de Jesus.
A Bíblia fala muito pouco de São José e a ele não ouvimos uma única palavra. D. António Couto diz que «São José é mesmo assim. É uma figura absolutamente silenciosa, não desatenta e descuidada. Atenta e carinhosa, mas, todavia, não se lhe ouve nunca uma palavra». O bispo de Lamego (Portugal), biblista, vê-o a assumir «um papel enorme na Encarnação». O que sabemos de São José não é pela sua boca, mas pelos seus actos e pelos sonhos através dos quais Deus lhe fala. Também aí se revela a personalidade de José, homem reservado: «O sonho é só nosso, coisa nossa, reservada». Características que Deus aceita e respeita. «O próprio Deus parece que concorda com José, ou pelo menos não discorda ou não quer mudar o estilo de vida de José. Deus respeita a maneira de ser de José e, quando quer comunicar com ele, comunica por sonhos». É nesses sonhos que José sabe que sua esposa Maria está grávida e que isso é «obra de Deus». Que fazer então? «José tem as alternativas: apresentar Maria na praça pública para ser apedrejada. Ele confia em Maria e põe isso de parte. Como também confia em Deus, José está para sair de casa, vai abandonar a cena, como quem diz “isto não é obra minha, é obra de Deus, então entrego-Lhe a obra toda”. É uma cena lindíssima», explica. Esta é uma perspectiva que não vemos muitas vezes sobre este sonho e a decisão de José aceitar Maria.
D. António Couto explica que a decisão de José está muito relacionada e justificada pelo tipo de matrimónio de José e Maria, virgem casada. «Estou convencido que era um matrimónio em ordem à protecção mútua: ambos orientados totalmente para Deus. Este tipo de matrimónio que não era destinado à procriação, mas à protecção mútua, porque uma mulher abandonada era uma mulher abandonada e um homem solteiro parecia mal, se não se casasse era amaldiçoado». Isso ajuda a perceber que ter filhos não estivesse nos seus planos, porque o matrimónio «era em ordem à dedicação total a Deus», um «estatuto que hoje é a vida religiosa, mas vista de outra maneira». Este bispo biblista afirma que este tipo de matrimónio «está documentado nos primeiros séculos antes de Cristo em mundo judaico e nos primeiros séculos depois de Cristo quer em mundo judaico quer em mundo cristão».
JOSÉ ASSUME A PATERNIDADE DE JESUS
E como é São José como pai? Será pai verdadeiro? «A função dele é cuidar de Maria, proteger Maria e proteger Jesus. É Pai», diz D. António Couto. Ao dar o nome a Jesus, assume plenamente a sua paternidade. E é um pai cuidador, «homem atento, vigilante, cuidadoso, que anda ao ritmo de Deus e a receber as mensagens de Deus».
Como terá vivido José o nascimento de Jesus? «Ele sabe muito mais do que nós, ele sabe tudo porque recebe a informação, ainda que em sonhos, de Deus. Sabe que aquele filho que nasce é um filho excepcional porque vem de Deus. Maria e José estão metidos nessa cena e têm de gerir silêncios e ao mesmo tempo admirar, maravilhar-se com tudo aquilo que está a acontecer e de certa forma perceber que através dos pastores (que representam o mundo judaico, os últimos da sociedade), através dos anjos, através dos magos (que representam o mundo pagão e que também vêm adorar Jesus e trazem presentes ricos), o mundo todo converge para aquele curral». D. António explica que é mesmo de um curral que se trata, apesar de muitos pensarem que Jesus nasceu numa gruta. «Tudo isto é de uma beleza e de uma singeleza imensa. É tudo excepcional e maravilhoso… O Evangelho diz de Maria, mas também poderia dizer de José, que “ela guardava tudo isto no seu coração”. O coração de Maria, como o coração de José, é um reservatório de maravilhas».
O padre David Palatino é sacerdote no Patriarcado de Lisboa. É doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e o coordenador do livro “Ide a José”, que vê como um «pequeno tratado de josefologia», pois através de textos de diferentes autores olha para esta figura de várias perspectivas. À FAMÍLIA CRISTÃdiz que «os primeiros escritos cristãos são as cartas de São Paulo e o Evangelho de Marcos e não fazem qualquer menção a São José. E mesmo São Marcos, que é uma das bases para a composição dos outros Evangelhos, fala de Jesus como carpinteiro e não como o filho do carpinteiro, como fazem Mateus e Lucas». Com a necessidade de falar da origem de Jesus nascem os Evangelhos da infância em Lucas e Mateus. Este último, escrevendo para judeus, «quer apresentar Jesus como o cumprimento das profecias e sobretudo como as profecias messiânicas que já eram anunciadas no Antigo Testamento e aí a figura de São José é primordial». Isto porque «São José era da descendência de David e este messianismo de Jesus precisava da paternidade de José para ser conhecido».
O padre David Palatino olha São José a partir de quatro dimensões: José como esposo de Maria, justo, pai de Jesus e sonhador. Começando pelo primeiro, José é «esposo, que deve ser enquadrado na perspectiva de um matrimónio judaico». Este padre explica que «no matrimónio judaico há dois passos: uma primeira formalização e depois uma oficialização um ano depois em que a esposa ia coabitar com o esposo». Foi entre um e outro passo que Maria ficou grávida. «José era verdadeiramente esposo de Maria e isso faz toda a diferença no momento de turbulência em que ele é invadido por esta notícia, ou pela constatação de uma realidade difícil de aceitar por alguém que era considerado justo», explica. E justo que significa? «Um homem justo nas categorias judaicas é como se fosse o santo de hoje. Nas categorias judaicas, justo era o cumpridor da Lei». Ao descobrir Maria grávida, José «vive este dilema: o que é que eu faço? Obedeço à lei e incrimino a minha esposa? Ou, por outro lado, faço prevalecer a justiça moral sobre a justiça legal, compadeço-me dela e o meu juízo será sempre de misericórdia?». Em vez de repudiar, ou seja, afastar-se de Maria, José aceita receber Maria e ser «pai de Jesus». O padre David Palatino prefere «falar em pai terreno» e «pai messiânico», porque «pelo sim de José, Jesus pode ser reconhecido como o Messias e inserir-se na linhagem de David».
JOSÉ COMUNICA COM DEUS PELOS SONHOS
E José é pai na sua plenitude. «Jesus bebe muito desta paternidade de São José para aprender a sua relação filial com o Pai. José ensina Jesus a ser filho. Por isso chama-se pai nutrício de Jesus, o que O educa, que Lhe ensina os preceitos da Lei, o que ensina a louvar a Deus sobre todas as coisas», explica. Como sonhador, José «manifesta esta confiança de deixar que Deus defina a trajectória da sua vida», mesmo que isso implique, e implica, um «constante refazer da sua vida». Ao sonhar, José «aprende a sonhar os sonhos de Deus e a transformar os seus próprios sonhos nos sonhos de Deus».
No nascimento de Jesus, o padre David Palatino acredita que José viveu o momento «com este sentido profundo do mistério», «com grande sentido de fé, de acolhimento da vontade de Deus». Por outro lado, «José também deve ter questionado os porquês na sua humanidade. Era um homem contemplativo, contemplava também todas estas realidades de uma forma misteriosa, sobretudo o ter de ir a Belém com a sua esposa grávida, o perceber que a qualquer momento ela podia dar à luz, o facto de nascer não nas circunstâncias ideais: “mas porquê?”, “o que é que Deus me quer ensinar com isto?”. Uma profunda interrogação, profundo questionamento alimentado também pela própria fé».
Com as visitas ao Presépio, «ia confirmando aquilo que lhe havia sido dito, vai sentindo profunda gratidão», vivendo tudo isto «com profunda liberdade», porque «é um dom que ele não pediu, acolheu, mas não aprisionou. Ele percebe que Jesus é para o mundo».
E que tem José a ensinar aos homens de hoje? D. António Couto encontra vários ensinamentos: um, o de que «sempre que nasce um filho nas nossas casas de hoje, nas nossas famílias de hoje, é a mão de Deus que está ali bem presente». E «os filhos não são nossos, os filhos são de Deus. Ele dá-nos esses filhos, não é para nós os possuirmos como coisas, como objectos, é para lhes prestarmos toda a atenção e para através deles vermos estas maravilhas e a maravilha da mão de Deus que está aí».
O bispo de Lamego acredita que este carpinteiro foi «um imigrante», «espécie de colono judeu» que foi para a Judeia participar na campanha de rejudialização. «José anda também ao sabor da História e daquilo que acontece, como as pessoas de hoje. Estes são os caminhos da história de Maria e de José que eles seguem com a mão de Deus. Mas nós nem sempre vemos nos caminhos da História a mão de Deus», afirma.
D. António Couto recorre às semelhanças entre José, esposo de Maria, com José do Egipto, ambos conhecidos como “homem dos sonhos”. Ora, este último, em Génesis 45,4-8, diz aos irmãos: «Não vos entristeçais nem vos aflijais por me terdes vendido para cá, porque foi para salvar as vossas vidas que Deus me enviou adiante de vós. Deus enviou-me adiante de vós para assegurar a permanência da vossa raça na terra, salvar as vossas vidas para uma grande libertação. Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, mas Deus». Diz o bispo de Lamego: «Isto é saber ler a vida em dois teclados: um é o teclado da História empírica que está lá, como está a de José e de Maria; outro teclado é o teclado de Deus em que se ouve a música de Deus. Devemos articular estes dois teclados. Este era o segredo principal das figuras do Presépio: é tudo claramente o teclado superior, da mão de Deus».
O padre David Palatino vê também pontes com a actualidade: «O próprio Jesus foi refugiado, a própria Sagrada Família foi refugiada, teve de fugir do perigo. Creio que além de ensinar as pessoas que vivem esses dramas a encontrar sempre um resíduo de esperança nos lugares onde se encontram, perceber que por aí pode passar o plano de salvação e o plano de felicidade, também tem muito a ensinar ao nosso coração para acolher essas pessoas». Por outro lado, podemos aprender a adaptarmo-nos às circunstâncias, «ter esta capacidade de constantemente refazer a sua vida, de quem não se resignou» e que «a nossa casa é onde estamos e a nossa vida é dinâmica, não é estática». A todos, São José ensina que cada um, por mais pequeno ou insignificante que possa parecer, é importante e pode ser essencial. «Os desígnios de Deus são insondáveis e até aqueles que estão em segundo lugar podem ter protagonismo ímpar na História da Salvação. Cada um de nós não vai salvar o mundo, mas vai transformar a realidade à sua volta e assim já contribui para transformar algo neste mundo e deixá-lo melhor do que o encontrou», conclui o padre David Palatino.
CLÁUDIA SEBASTIÃO
Família Cristã