MEMORANDO PREVÊ CORTES EM VÁRIOS PROGRAMAS DE FOMENTO EUROPEU

Acordo mantém Europa unida, mas não afasta fantasmas

MEMORANDO PREVÊ CORTES EM VÁRIOS PROGRAMAS DE FOMENTO EUROPEU

Os chefes de Estado e de Governo da União Europeia chegaram na terça-feira a acordo para colocar em marcha um multimilionário plano de recuperação económica, no encalço da crise gerada pela pandemia do novo coronavírus. Para Victor Ângelo e Paulo Canelas de Castro, especialistas ouvidos pel’O CLARIM, o acordo constitui um balão de oxigénio para os países em maiores dificuldades económicas, mas encerra, ainda assim, vários aspectos menos conseguidos.

O acordo, alcançado ao fim de quatro dias de negociações, prevê a criação de um fundo de recuperação financiado por uma dívida comum de 750 mil milhões de euros, 390 mil milhões dos quais serão desembolsados sob a forma de subvenções a fundo perdido. Os restantes 360 mil milhões de euros serão atribuídos sob a forma de empréstimos, com um objectivo similar: ajudar os países mais afectados pela hecatombe económica.

A estratégia de saída da recessão gizada pelas autoridades europeias será também apoiada por um orçamento plurianual para o período 2021-2027, no valor de mil e 74 biliões de euros. Para Victor Ângelo, antigo membro do “think thank” Norte-Sul do Conselho da Europa, o acordo esta semana anunciado deverá ajudar a cumprir aquilo que se propõe: evitar o colapso social de alguns dos Estados-membros da União. «Os montantes aprovados, quer no que respeita ao plano de recuperação, quer ao orçamento da Comissão Europeia para os próximos sete anos [2021-2027], são gigantescos. Por isso, será mais adequado falar de cuidados intensivos do que de um balão de oxigénio. Certos países, aqueles que são mais frágeis do ponto de vista económico e que foram duramente afectados pela pandemia, precisam de verdadeiras transfusões de capital para poderem evitar situações de colapso social e de falência empresarial», reconhece o também antigo Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para as Operações de Paz em declarações a’O CLARIM.

Tido como histórico por Emmanuel Macron e por vários outros líderes europeus, o acordo implicou uma série de concessões aos chamados “países frugais”: Países Baixos, Áustria, Dinamarca, Suécia e Finlândia. O bloco conseguiu reduzir o volume de ajudas, ter maior controlo sobre as mesmas e manter os descontos na contribuição para o orçamento. No entender de Victor Ângelo, emerge claramente como relativo vencedor de uma contenda que poderá ter consequências imprevisíveis no que às políticas de modernização da economia europeia diz respeito. «Teoricamente, ao aprovar o acordo[os Estados-membros]mostram que houve uma aproximação de posições e que cada país considera que o acordo tem em conta os seus interesses nacionais. É uma questão de compromisso», sublinha o analista. «Na verdade, porém, assistimos a uma vitória relativa do grupo de países que tinha o Primeiro-Ministro holandês como ponta-de-lança. Também se deve notar que certos programas de modernização e de transformação que são geridos directamente pela Comissão Europeia foram seriamente reduzidos. Um exemplo é o Fundo para a transição ecológica, que passou de 37,5 a 17,5 mil milhões de euros», lembra Victor Ângelo.

Para Paulo Canelas de Castro, professor de Direito da Universidade de Macau e Coordenador do Curso de Mestrado em Direito da União Europeia ministrado pela maior instituição de Ensino Superior do território, os cortes a que o acordo sujeita programas comuns de investimento e de desenvolvimento é um dos aspectos menos conseguidos do pacto. O Mecanismo de Recuperação e Resiliência – a verba mais relevante do fundo de reconstrução, destinada a financiar reformas e investimentos – aumenta a sua dotação para os 672,5 mil milhões de euros, mas os restantes programas do fundo sofrem cortes significativos.

O programa científico Horizon Europe passa dos 13,5 mil milhões para os cinco mil milhões de euros, o de investimento Invest UE dos 30,3 mil milhões para os 5,6 mil milhões e o Fundo de Transição Justa para o clima dos trinta mil para os dez mil milhões de euros. «Estes são outros dos valores que ficaram menorizados neste acordo. Perante a proposta inicial – e para além do aspecto de que no fundo de recuperação o equilíbrio entre subvenções e empréstimos foi, de alguma sorte, pervertido – há cortes muito importantes nos montantes de vários programas comunitários. Esta é outra das vítimas. É justamente a ideia de uma prossecução de cooperação inter-europeia no âmbito de programas comunitários, relativamente a valores importantes da União Europeia, como sejam os da saúde, da educação, da investigação e inovação, a transição justa para uma sociedade descarbonizada ou a coesão inter-regional», nota o académico da Universidade de Macau, acrescentando: «Se olharmos para os pacotes que foram estabelecidos neste domínio, verificamos que tudo o que tem a ver com os programas comunitários para estas áreas, tão importantes para o futuro, sofreram cortes importantes. E é neste sentido que eu acho que há aqui um equilíbrio entre o imediato e o futuro, em que o acordo, tal como foi finalmente obtido, é menos conseguido, diria eu, do que seria desejável seguramente, e do que chegou a ser pensado que era possível».

O acordo também reforça o controlo sobre a concessão de ajudas directas para satisfazer os Países Baixos, que exigiam que os países pudessem vetar os planos de reforma e de investimento dos seus parceiros, ao passo que a Comissão Europeia propunha que estes apenas tomassem decisões a nível técnico. Ao abrigo do acordo, os Estados-membros deverão submeter os seus planos à Comissão e estes terão também de ser aprovados por uma maioria qualificada dos 27.

Pela primeira vez, também é introduzida a condicionalidade ligada ao Estado de Direito, um mecanismo que contou com a oposição da Hungria e da Polónia. «Há aqui apreensões relativamente à forma como na prática alguns Estados têm vindo a prosseguir esse património comum de ideário que é o cimento e o sinal de identidade da União Europeia. Ora, eu julgo que as fórmulas que foram estabelecidas no acordo, nesse aspecto, ficam aquém do desejável: são pelo menos ambíguas e referem para um tempo futuro a definição desse regime de condicionalidade», assume Paulo Canelas de Castro. «Esse regime vai ter que ser definido no futuro. Há, ainda assim, elementos positivos. Desde logo estabelecer-se que a aprovação é por maioria qualificada, o que permite fugir, digamos, a essa lógica de unanimidade que durante tanto tempo inviabilizou qualquer progresso neste domínio, mas o mecanismo é ainda incerto», conclui o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Macau.

Marco Carvalho

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