A Santa Missa

Perpetuação da Páscoa no Seio da Igreja

Todos os anos por volta da época natalícia somos presenteados com frases do tipo “o Natal é todos os dias” ou “Natal devia ser o ano todo”. Tais frases carregadas de emoção são proferidas normalmente por alguém ligado ao mundo artístico e sem a mais pequena ideia do que o Natal realmente representa. No caso da Páscoa, porém, a frase “a Páscoa é todos os dias”, faz todo o sentido. Na verdade, a Páscoa de Cristo está presente de modo efectivo, e não meramente metafórico, na Igreja e no mundo todos os dias. Vejamos como.

Origem e significado da palavra Páscoa

A Páscoa cristã é descendente e herdeira da Páscoa judaica.

A palavra portuguesa Páscoa deriva do latim pascua, que por sua vez representa a latinização do vocábulo grego πάσχα /páscha/ [o fonema grego χ, transcrito aqui como /ch/, era pronunciado como j em Espanhol]. Já o grego πάσχα é uma helenização do substantivo hebraico פֶּ֫סַח /pésaḥ/. Pésaḥ é o nome que os judeus ainda hoje usam para a Páscoa judaica ou Festa dos Pães Ázimos que comemora a libertação do povo hebreu do cativeiro do Egipto sob a liderança do patriarca Moisés.

O significado etimológico da palavra Pésaḥ é, no entanto, algo difícil de determinar com precisão e tradicionalmente esta palavra tem sido relacionado com o verbo פָּסַח /pāsaḥ/. Ora, este verbo é também ele problemático na medida em que da raiz פסח se podem derivar dois significados mais ou menos inconciliáveis. O verbo pāsaḥ pode significar “coxear”, e dele se deriva o adjectivo פִּסֵּח “coxo”, mas parece poder significar, também, em algumas circunstâncias “passar ao largo”, ou mesmo “proteger”. Deste último derivaria então o substantivo פֶּ֫סַח /pésaḥ/ ou Páscoa.

Todavia, este segundo significado depende muito do contexto em que as formas verbais se encontram. A tradução que a Septuaginta, a versão grega do Velho Testamento, sugere para o versículo 27 do capítulo 12 do livro do Êxodo pode ajudar à compreensão do significado desta palavra. Nesse versículo aparecem juntos o substantivo פֶּסַח e o verbo פָּסַח, traduzidos por πάσχα “Páscua” e ἐσκέπασε, ou seja, “protegeu”, respectivamente. Quando inserido no cotexto [não contexto] geral dos capítulos 11 e 12 do Livro do Êxodo, e tendo em especial atenção o versículo 13 também do capítulo 12, onde o verbo reaparece na forma de primeira pessoa וּפָסַחְתִּי, o que o verbo pāsaḥ parece então significar é “passar ao largo” de alguma coisa. Isto sugere que o significado original do vocábulo hebraico פָּסַח /pāsaḥ/ é “passagem ao largo”.

Assim, na noite da décima praga, em que a morte passaria pela terra do Egipto, esta passaria ao largo das casas marcadas com o sangue do cordeiro e assim os seus habitantes escapariam à morte. Este é afinal o significado também da Páscoa Cristã, a passagem da Morte ao largo daqueles marcados com o sangue do cordeiro pascal.

 

A Páscoa da Antiga Aliança

A Antiga Aliança entre Deus a o povo hebreu começa quando o patriarca Abraão aceita sacrificar o seu único filho Isaac, oferecendo-o a Deus em holocausto (Gn., 22:1-118). Mas, no momento em que Abraão está prestes a matar o próprio filho, Deus, verificando que este está, de facto, disposto a obedecer-Lhe até às últimas consequências, substitui Isaac por um cordeiro. Uma vez que a vítima pretendida não chega a ser imolada, o sacrifício que Abraão oferece fica incompleto.

Depois da morte de José, bisneto de Abraão, o povo israelita torna-se cativo na terra do Egipto (Ex., 1:8-14). Deus, fiel à sua aliança, deseja, através de Moisés e do seu irmão Aarão, libertar o seu povo e conduzi-lo à terra prometida. Mas, dada a recusa do Faraó em deixar ir os hebreus, Deus lança sobre os egípcios as famosas dez pragas, após as quais o Faraó se vê obrigado a deixar os hebreus partirem.

A Pésaḥ ou Festa dos Pães Ázimos celebra a libertação dos hebreus do Egipto e o começo da sua peregrinação a caminho da terra de Israel.

 

O sangue do cordeiro

A décima, e última praga, consistia na morte dos primogénitos em todas as casas do Egipto que não estivessem marcadas com sangue nos umbrais da porta. De acordo com as indicações dadas a Moisés, os hebreus deveriam sacrificar um cordeiro nessa noite e pintar com o sangue desse mesmo cordeiro os umbrais das portas das suas casas. Deus, que nessa noite trairia a morte à terra do Egipto, passaria ao largo das casas cujas portas estivessem pintadas com o sangue do cordeiro e os seus habitantes ficariam ilesos. Neste contexto, o sangue do cordeiro aparece pela primeira vez como sinal de vida; todos aqueles marcados com o sangue do cordeiro sacrificado estavam protegidos contra a morte. Também na Nova Aliança os marcados com o sangue do cordeiro pascal, neste caso Jesus, estão protegidos contra a Morte. O sangue do cordeiro sacrificado é assim penhor de vida em ambas as alianças.

Em resultado da morte dos primogénitos dos egípcios, incluindo o príncipe herdeiro, o Faraó dá liberdade ao povo hebreu e este começa o caminho em direcção à terra prometida. Esse caminho, no entanto, só terminará na Cruz e na Ressurreição de Cristo, uma vez que, no Velho Testamento, a terra prometida é a prefiguração da Igreja, que tem a sua origem no sangue derramado na Cruz.

 

Jesus, o novo Isaac

“cum Pascha nostrum immolatus est Christus” (quando Cristo, a nossa Páscoa, foi imolado).

Há, porem, diferenças importantes entre o sacrifício da Páscoa dos hebreus e o da nova aliança. A primeira diferença é que Jesus, ao contrário de Isaac, não é substituído, o seu sacrifício vai até ao fim, é consumado na sua integridade (Jo., 19:30). Isaac é substituído por um cordeiro, Cristo, pelo contrário, toma o lugar de cordeiro Pascal. Abraão tinha a intenção de obedecer a Deus até às últimas consequências, mas é Cristo quem o faz de facto ao entregar a sua própria vida em obediência ao Pai. O Sacrifico de Cristo é, deste modo, perfeito.

A segunda é que sendo o Sacrifício de Jesus um sacrifício perfeito, em vista da própria natureza Divina de Cristo, este é final (Hb., 10:1-18), e como tal liberta de uma só vez o género humano do Pecado e, em consequência, da Morte. Na Velha Aliança os hebreus tinham de sacrificar repetidamente cordeiros para expiação das suas faltas individuais. Quando Jesus inicia a sua vida pública, João Baptista identificado-O, ainda antes de O baptizar, com o Cordeiro de Deus que vem para expiar os pecados, não os pecados individuais, mas sim o Pecado do mundo. A consequência da expiação do Pecado pelo sacrifício da Cruz é a libertação do Homem da lei da morte que havia entrado no mundo através do Pecado.

 

O novo Êxodo da nova casa de Israel

A Igreja é a nova Casa de Israel, e os seus fiéis o novo povo escolhido. A participação na Velha Aliança era feita por meio de consanguinidade, ou seja, estava aberta apenas a descendentes de Abraão ou, quando muito, àqueles que se circuncidassem. Já a Nova Aliança esta aberta a todos aqueles que confessarem que Jesus Cristo é o filho de Deus (Jo., 1:12).

O Êxodo que a Nova Aliança traz através do sacrifício do Cordeiro Pascal é do jugo da Morte e do Pecado. A ressurreição de Cristo, que confirma Jesus como o novo Isaac e afirma o seu Sacrifício como sacrifício perfeito, é a nova Páscoa do povo hebreu, que uma vez livre do jugo da Morte edifica o novo templo de Jerusalém que é a Igreja.

 

O sacrifício Pascal da Santa Missa

Ao contrário dos sacrifícios da Velha Aliança que tinham de ser repetidos para a expiação individual, o sacrifício de Cristo é único e final, redimindo de uma só vez todo o género humano, até mesmo aqueles que precederam no tempo a Jesus. Esse sacrifício é feito presente na vida da Igreja através da Santa Missa.

A Missa não é um novo sacrifico nem tão pouco a repetição do Sacrifício da Cruz, a Missa é próprio Sacrifício da Cruz que se torna presente sobre o altar. Por outras palavras a Missa traz o Calvário à nossa presença ou, de outra perspectiva, leva-nos até ao Calvário. Na Missa nós estamos diante da própria Cruz de Cristo como se fossemos transportados no tempo aos acontecimentos de há dois mil anos.

No entanto, desde a reforma litúrgica de 1969-70 que existe alguma confusão no que ao entendimento da Missa diz respeito. A Missa é vista por muitos como sendo uma reencenação da Última Ceia. Essa é, de facto, a visão dos protestantes que não aceitam nem o conceito de sacrifício eucarístico, nem o conceito de presença substancial de Cristo na Hóstia Consagrada, antes acreditam numa presença meramente espiritual a que eles, no entanto, chamam de presença real. Na verdade, para que não haja dúvidas de que a presença de Cristo no pão consagrado é somente espiritual e só se dá no próprio acto da comunhão, muitos pastores protestantes fazem questão de deitar fora todo o pão que sobrar depois da celebração.

De acordo com a doutrina católica transversal a toda Igreja, ou seja, partilhada também pelas igrejas orientais, a Missa é o Sacrifício de Jesus Cristo que se renova ou se actualiza sobre os altares de todo o mundo para sufrágio de vivos e mortos. A diferença aparente entre o Sacrifício da Cruz e o sacrifício do altar, é que este último toma a forma ou aspecto exterior da Última Ceia e é incruento, ou seja, não envolve o derramamento de sangue. Esta tem sido a doutrina da Igreja desde o seu inicio, basta ler a Carta ao Hebreus para o verificar, e em nada foi modificada pelo Concilio Vaticano II. Na verdade, o capitulo segundo da “Sacrosanctum Concilium”, a constituição dogmática referente à liturgia começa com estas palavras: “Na Última Ceia, na noite em que foi entregue, o nosso Salvador instituiu o Sacrifício Eucarístico do seu Corpo e Sangue para perpetuar pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar, o Sacrifício da Cruz, confiando à Igreja, sua esposa amada, o memorial da sua Morte e Ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é concedido o penhor da glória futura”. Como se pode verificar por estas palavras, o próprio Concílio Vaticano II confirma a doutrina da Igreja de que a Missa ou Sacrifício Eucarístico é a perpetuação do Sacrifício da Cruz e não uma mera reencenação da Última Ceia.

Mas a Missa vai mais além do Sacrifício da Cruz como o texto da “Sacrosanctum Concilium” afirma. Nos altares do mundo inteiro, sempre que a Santa Missa é celebrada o Mistério Pascal está presente na sua totalidade, isto é, tanto a morte na Cruz como a Ressurreição de Jesus Cristo, pois na Hóstia Consagrada é Jesus ressuscitado que é consumido na comunhão sacramental, tal como na velha aliança o cordeiro pascal, uma vez imolado, era comido pelos participantes do sacrifício.

Assim, através do Santo Sacrifício da Missa, a Páscoa de Cristo, nosso redentor, está presente todos os dias na vida da Igreja em forma sacramental. Pela nossa participação nos sacramentos, em especial no sacramento da Comunhão e da Confissão, o qual é imprescindível para nos preparar para receber a Cristo sacramentado de modo condigno, somos participantes activos do Mistério Pascal como se estivéssemos estado presentes nos acontecimentos de há dois mil anos em Jerusalém, e é exactamente por isso que os católicos têm de ir à Missa aos Domingos e dias santos, para manter no decorrer das suas vidas a ligação efectiva a Cristo e ao seu Sacrifício Pascal que nos abre a porta para a Vida Eterna.

“Laus Deo!”

Roberto Ceolin 

Universidade de São José

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