A Rússia e o Ocidente

Entre o frio escaldante e o calor gelado

A Rússia lançou uma nova Guerra Fria contra o Ocidente, diz-se por estes dias. E o Ocidente? Está a responder na mesma moeda? Uma parte, sim – ou pelo menos parece estar a preparar-se para isso. Outra parte – a principal – dá sinais contraditórios.

No século XX, duas visões da História enfrentaram-se com estrondo dentro das universidades e não só. Uma, que remonta aos nossos antepassados gregos e romanos, defende que os líderes políticos e militares influenciam de forma decisiva o curso dos acontecimentos e tudo o que deles decorre; outra, completamente moderna, propõe que essas figuras têm, em si mesmas, um papel secundário e que não passam de agentes de grandes correntes económicas e sociais. Ou seja, estarem lá aqueles ou outros quaisquer é exactamente igual.

Falar disto é útil porque os Estados Unidos, o Ocidente em geral e a Rússia vivem um momento em que as tais grandes correntes os empurram para uma situação de conflito latente, senão mesmo aberto. Enquanto isso acontece, um líder político, neste caso o Presidente dos Estados Unidos, professa o seu respeito e admiração por outro líder, neste caso o Presidente da Rússia.

Mais: esse mesmo Presidente da Rússia é acusado pelos serviços de informação dos Estados Unidos de ter ordenado uma campanha de manipulação, desinformação e pirataria informática com vista a ajudar a eleição de Donald Trump. E há também quem o acuse de estar enfeudado aos interesses russos, seja por interesse próprio, seja porque está a ser alvo de uma chantagem baseada em vídeos comprometedores.

Em simultâneo com estes acontecimentos, as forças armadas dos Estados Unidos reforçam a sua presença militar na Europa para contrabalançar uma eventual ameaça russa. Pela primeira vez desde o fim da União Soviética, carros de combate norte-americanos voltam a cruzar as estradas e campos europeus. Pela primeira vez desde sempre, milhares de militares e centenas de veículos blindados dos Estados Unidos realizam grandes exercícios na Polónia e nos países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia), que são os mais vulneráveis a eventuais aventuras militares de Moscovo.

Os Estados Unidos estão de volta à Europa e, pelos vistos, vieram para ficar. Por causa da Rússia.

Todavia, o Presidente Trump qualifica a NATO, aliança militar que justifica essa mesma presença, como «obsoleta» e acusa os outros Estados-membros de «explorarem» os Estados Unidos, uma vez que não gastam o suficiente para assegurarem a sua própria defesa (o que, com algumas excepções, é verdade).

Para Donald Trump, a linha de força da política externa dos Estados Unidos é clara: «A América primeiro». No seu discurso de tomada de posse, a 20 de Janeiro, o Presidente garantiu que o País irá «reforçar velhas alianças e formar novas», mas também deixou claro que não está disponível para «subsidiar os exércitos de outros países enquanto as nossas próprias forças armadas caem num triste esgotamento».

Assim sendo, o que podemos esperar dos Estados Unidos face à Rússia? Poderá Donald Trump impor a sua vontade de aproximação à Rússia, não obstante esta estar a fazer tudo o que pode para minar o Ocidente, dividi-lo e enfraquecê-lo?

Ou será que as tais grandes correntes históricas e geopolíticas irão abafar o desejo do Presidente norte-americano?

Na realidade, ninguém sabe ao certo o que irá acontecer, até porque o próprio Trump diz que «respeita» o Presidente Vladimir Putin e gostaria de se de «dar bem com ele», mas não sabe se isso será possível.

O que sabemos bem é o que pretende Putin. Nem mais nem menos do que restaurar o poder e a influencia da Rússia até aos níveis usufruídos pela antiga União Soviética. O Presidente russo disse que considera o desaparecimento desta como «um grande desastre geopolítico do século XX» e, desde que chegou ao poder, em 2000, tem feito tudo o que pode para que ele seja anulado.

Alcançar esse objectivo passa, em grande medida, pela restauração da velha área de influência soviética. Para o fazer, o Kremlin tem recorrido a diferentes ferramentas. A primeira, e mais radical, é a guerra.

Depois de ter esmagado a insurreição chechena, em 2000, o Governo de Moscovo usou as armas em três locais: Geórgia (2008), Ucrânia (2014 até à atualidade) e Síria (2015 até à atualidade). As intervenções russas obedecem sempre a dois imperativos estratégicos: afastar os seus potenciais inimigos (Europa e Estados Unidos) para o mais longe possível das suas fronteiras; obter acesso directo ao Mar Mediterrâneo, para assim fazer valer os seus interesses nessa zona, no Médio Oriente e mesmo na própria Europa.

Outra das armas que a Rússia tem usado com eficácia é a propaganda e a desinformação, com um recurso maciço à Internet. Para além dos seus meios de comunicação oficiais, como a cadeia de televisão RT e a agência de notícias Sputnik, o Kremlin tem ao seu serviço milhares de pessoas cuja única função é espalhar propaganda e falsa informação no Ocidente, especialmente sobre os políticos e partidos menos agradáveis aos seus interesses.

Uma terceira ferramenta usada pelos russos é a espionagem e a pirataria informática, que lhes têm permitido não só obter muita informação valiosa como também interferir directamente na vida política de vários Estados. A esse título, veja-se o caso do correio electrónico do Partido Democrático norte-americano, que foi pirateado por “hackers” russos e depois usado para prejudicar a candidatura presidencial de Hillary Clinton, ou ainda o ciber-ataque de larga escala dirigido contra a Estónia, em 2007, que deixou grande parte dos principais sítios “web” do País inacessíveis.

O uso combinado de todos estes métodos, e outros que o espaço não nos permite abordar, já foi baptizado de Guerra Híbrida. Há 30 anos chamava-se pura e simplesmente Guerra Fria. Ela está de volta, e os polacos, lituanos, letónios e estónios já estão a travá-la e a preparar-se para algo pior: desde 2005, os orçamentos militares dos três países bálticos cresceram quase 50 por cento; em apenas um ano (de 2015 para 2016), o da Polónia subiu 18 por cento.

As intervenções militares russas na Ucrânia e na Síria foram jogadas arriscadas para o Presidente Putin, mas que parecem ter resultado. Perante isto, e perante as palavras conciliadoras do Presidente Trump em relação ao seu homólogo russo, já são muitos os europeus que temem enfrentar o urso russo sozinhos.

Cabe aos Estados Unidos da América – e não a Donald Trump – esclarecer essa dúvida.

ROLANDO SANTOS

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