A História de Pedro Machado Miranda Malheiro – 2

O Monsenhor povoador

Com a passagem da Corte Portuguesa para o Novo Mundo tudo se irá modificar, inclusive a própria posição do Brasil em relação ao chamado Império Português. Se até então era completamente interdita a presença de estrangeiros em terras de Vera Cruz, a não ser por períodos curtos derivados de naufrágios ou algo do género, e nem sequer os navios de grande porte tinham autorização para permanecer nos portos do Brasil, com a chegada de D. João VI e respectiva camarilha o cenário irá alterar-se radicalmente.

A primeira grande medida de um «Brasil de cara virada ao mundo» – na expressão da investigadora Maria Adelina Amorim, que esta semana continua a acompanhar-nos nesta memória narrativa – é, de facto, a abertura dos seus portos, primeiro, aos ingleses, para os ressarcir de um alegado «esforço de guerra» e da protecção prestada à família real durante as invasões francesas, e, posteriormente, a toda uma vasta panóplia de países. Como resultado disso, espalhar-se-iam pelos recônditos cantos do vasto território gente das mais variadas proveniências. Houvera antes disso tentativas de estrangeiros se estabelecerem nessas terras que seriam fortemente reprimidas pelas forças portuguesas. Foi o caso dos franceses, fundadores das cidades do Rio de Janeiro e de São Luís de Maranhão. A luta de Portugal nessa sua extensão territorial (sim, porque considerar Brasil colónia portuguesa é, no nosso entender, errado) travou-se nos espaços fronteiriços, sobretudo ao longo dos grandes rios de modo a impedir a entrada e estabelecimento de espanhóis, franceses, holandeses, ingleses e até irlandeses.

O Portugal de então, como é sabido, não tinha gente suficiente para povoar as novas terras, daí a lusa política de mestiçagens. Era abundante a migração da metrópole para a província do Brasil, migração essa que teve de ser contida senão Portugal corria a risco de ficar exaurida de gente. «Vivia-se no País um período de grande carestia e uma falta generalizada de população masculina. As invasões francesas provocaram a morte de milhares de homens, uma contabilidade muito triste da nossa história», nota Maria Adelina Amorim.

Juntamente com a Corte tinham deixado Portugal milhares de pessoas, e nos anos seguintes, e em sucessivas vagas, outras tantas lhe seguiriam os passos. Havia que repovoar o novel continente com europeus e é por isso, e também por questões estratégicas, «pois o País via-se obrigado a criar alianças de conveniência na Europa para fazer face aos franceses», que foi prontamente aceite um pedido feito a Portugal pelo cantão suíço de Friburgo, para que aquele recebesse «na sua nova colónia» um grupo de famílias locais «que na tão apetecida América» pretendiam iniciar uma nova vida. Fustigava então o país transalpino um inverno particularmente rigoroso com períodos de baixíssima produtividade alimentar; panorama, aliás, comum em toda a Europa devido às intempéries e também às guerras napoleónicas. Foram anos de muita fome e vasta mortandade no coração do Velho Continente.

Esta estratégia de mandar estrangeiros é totalmente inédita no âmbito do Império Português. E acontece numa época assinalada por uma série de processos independentistas na América do Sul, várias rebeliões de escravos negros e a substituição lenta do trabalho destes pela mão-de-obra branca. Ou seja – e nas palavras de Maria Adelina Amorim – «esta tentativa de repovoar o grande Brasil com gente europeia tem como objectivo fazer face a algumas agitações internas que estavam a aparecer com muita frequência entre a população de origem africana e, ao mesmo tempo, obedece a uma estratégia de Portugal que na Europa procura aliados para fazer frente aos franceses. Além disso, à Europa, como seria de esperar, interessa ganhar espaço no Novo Mundo».

Monsenhor Pedro Machado Miranda Malheiro desempenhará um papel fundamental em todo este processo, pois a ele é atribuído o cargo de inspector, “nomeado para escolher e prover todas as necessidades desta nova colónia no Brasil”. Sabe-se que foi autorizada a vinda de uma centena de famílias, mas no final acabariam por chegar muitas mais. No total terão partido do cantão de Friburgo mil e 400 pessoas, e em sucessivas levas. Um processo longo, portanto. A autorização real data de 1818 e a chegada dos primeiros colonos – transportados em oito navios fretados pela Coroa Portuguesa, que também cobriu todos os encargos inerentes a tão longa e atribulada viagem – é de 1819. Uma jornada, recorde-se, marcada pela morte de alguns dos passageiros que da Suíça tinham partido já doentes ou num lamentável estado de subnutrição. Os que tiveram sucesso acabariam por constituir o primeiro núcleo de imigração europeia não portuguesa no Brasil.

Para o estabelecimento dessa colónia procurou-se uma zona de montanha e planaltos férteis, de clima ameno, condizente com a situação geográfica onde viviam até então estes colonos que eram, na sua essência, simples agricultores e criadores de gado. «Cada família teve direito a uma habitação e a um quinhão de terra que deveria cultivar a desenvolver», especifica Maria Adelina Amorim. A escolha do local, o Morro Queimado ou Cantagalo, não é isenta de polémica. E mais uma vez vemos o nosso Monsenhor Miranda Malheiro como interveniente. Havia uma vasta região satélite do Rio de Janeiro, zona ainda não muito povoada de colonos portugueses, pertença de duas prestigiadas figuras locais: uma delas ligada a Guimarães, tal como Malheiro; a outra quadro superior da Igreja, o Monsenhor José da Cunha Almeida. Ora, um e outro venderam os seus terrenos a Pedro Machado Miranda Malheiro aos custos vigentes da época. Como se pode apurar pelas edições de jornais coevas esses terrenos terão sido bastante inflaccionados, daí que muitas pessoas viessem a questionar a transparência do processo. Entre elas contavam-se, como seria de esperar, os jornalistas, sendo de destacar aqui Hipólito da Costa, director do Correio Brasiliense, jornal sedeado em Londres, pois era a partir da capital inglesa que operavam todos os movimentos que contestavam a presença da Coroa Portuguesa no Brasil. Logicamente, os nossos “aliados” ingleses tinham o maior interesse na desagregação do Reino de Portugal, caso contrário não teriam dado guarida e financiado esses movimentos. Prova desse interesse é o facto de a Inglaterra ter sido o primeiro país a reconhecer a independência do Brasil, proclamada por D. Pedro IV, filho de D. João VI, que passaria a ser conhecido como D. Pedro I do Brasil.

Temos, portanto, Miranda Malheiro, homem do Reino de Portugal, e depois, Miranda Malheiro, homem do Brasil independente. Embora assista à independência das terras de Vera Cruz é injusto colocar-lhe o rótulo de independentista. É, tão e somente, um homem do seu tempo. E, como castigo, acaba por ser impedido de entrar em Portugal quando regressa na companhia de D. João VI, que nada pôde fazer para reverter a situação pois se encontrava nessa altura em conflito com a Corte Portuguesa, precisamente por causa da questão brasileira, o que de certa forma lhe limitava o poder. Assim, Miranda Malheiro foi considerado na altura «um traidor a Portugal e favorecedor dos interesses do Brasil». Recorde-se que, contra a sua vontade, D. João VI foi obrigado a regressar a Portugal, em 1821, onde veio a morrer um ano depois, com o Brasil a tornar-se independente em 1822.

«Não esqueçamos que houvera antes por parte das autoridades portuguesas a decisão de envio de gente branca para o Brasil, maioritariamente açorianos, numa tentativa de civilizar essas novas terras», lembra ainda a historiadora.

Na década de 1820 chegará uma segunda vaga de imigrantes europeus, desta feita da Alemanha. D. Pedro, filho de D. João VI, primeiro imperador do Brasil, convoca novamente o Monsenhor Pedro Machado Miranda Malheiro para fazer com esta nova colónia o que fizera com a anterior, dada a sua vasta experiência. Malheiro, uma vez mais, e como se esperava, deu bem conta do recado.

Pedro Machado Miranda Malheiro, numa situação de semi-exilado, viveria ainda dezasseis anos no Brasil independente, tendo falecido em 1838.

Joaquim Magalhães de Castro

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