A Comunidade Humana, Sonho de Deus

A Comunidade Humana, Sonho de Deus

EXTRACTOS DA MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO POR OCASIÃO DO XXV ANIVERSÁRIO DA FUNDAÇÃO DA PONTIFÍCIA ACADEMIA PARA A VIDA

A comunidade humana é o sonho de Deus desde antes da criação do mundo (Ef., 1, 3-14). Nela o Filho eterno gerado por Deus assumiu carne e sangue, coração e afectos. No mistério da geração a grande família da humanidade pode encontrar-se a si mesma. De facto, a iniciação familiar na fraternidade entre as criaturas humanas pode ser considerada um verdadeiro tesouro escondido, em vista da reorganização comunitária das políticas sociais e dos Direitos Humanos, dos quais hoje sentimos grande necessidade. Por isso, é preciso crescer na consciência da nossa descendência comum da criação e do amor de Deus… Devemos voltar a evidenciar esta paixão de Deus pela criatura humana e o seu mundo. Ela foi criada por Deus à sua “imagem” – “varão e mulher” a criou (Gn., 1, 27) – como criatura espiritual e sensível, consciente e livre. A relação entre o homem e a mulher constitui o lugar eminente no qual a criação inteira se torna interlocutora de Deus e testemunha do seu amor…

DEGRADAÇÃO DO HUMANO E PARADOXO DO “PROGRESSO”

“A inspiração de comportamentos coerentes com a dignidade da pessoa humana diz respeito à teoria e à prática da ciência e da técnica na sua abordagem geral em relação à vida, ao seu sentido e ao seu valor”… Neste momento da história, a paixão pelo humano, pela humanidade inteira, está em grave dificuldade. As alegrias das relações familiares e da convivência social parecem profundamente desgastadas. A desconfiança recíproca dos indivíduos e dos povos alimenta-se de uma desmedida busca do próprio interesse e de uma competição exasperada, que não desdenha a violência. A distância entre a obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade da humanidade partilhada parece aumentar: até fazer pensar que entre o indivíduo e a comunidade humana já esteja em curso um cisma. Na encíclica Laudato sievidenciei o estado de emergência no qual se encontra a nossa relação com a história da terra e dos povos. É um alarme provocado pela pouca atenção concedida à grande e decisiva questão da unidade da família humana e do seu futuro. A erosão desta sensibilidade, por obra dos poderes mundanos da divisão e da guerra, está a crescer globalmente, com uma velocidade muito superior à da produção dos bens. Trata-se de uma verdadeira cultura – aliás, seria melhor dizer de uma anti-cultura – da indiferença pela comunidade: hostil aos homens e às mulheres e aliada com a prepotência do dinheiro. Esta emergência revela um paradoxo: como pôde acontecer que, precisamente no momento da história do mundo em que os recursos económicos e tecnológicos disponíveis nos permitiriam cuidar suficientemente da casa comum e da família humana, honrando a entrega que nos fez o próprio Deus, precisamente eles, os recursos económicos e tecnológicos, dão origem às nossas divisões mais agressivas e aos nossos piores pesadelos? O sistema do dinheiro e a ideologia do consumo seleccionam as nossas necessidades e manipulam os nossos sonhos, sem qualquer consideração pela beleza da vida partilhada nem pela habitabilidade da casa comum.

UMA ESCUTA RESPONSÁVEL

O povo cristão, ao ouvir o grito dos sofrimentos dos povos, deve reagir aos espíritos negativos que fomentam a divisão, a indiferença, a hostilidade. Deve fazê-lo não só para si, mas por todos. E deve fazê-lo imediatamente antes que seja demasiado tarde… A reabilitação da criatura de Deus à feliz esperança do seu destino deve tornar-se a paixão dominante do nosso anúncio. É urgente que os idosos acreditem mais nos seus melhores “sonhos”; e que os jovens tenham “visões” capazes de os impelir a comprometerem-se corajosamente na história (GI., 3,1). Uma nova perspectiva ética universal, atenta aos temas da criação e da vida humana, é o objectivo para o qual nos devemos orientar no plano cultural. Não podemos continuar no caminho do erro perseguido em tantas décadas de desconstrução do humanismo, confundido com uma qualquer ideologia da vontade de poder. Devemos contrastar uma semelhante ideologia, que se serve do apoio convicto do mercado e da técnica a favor do humanismo. A diferença da vida humana é um bem absoluto, digno de ser eticamente salvaguardado, precioso para o cuidado de toda a criação. O escândalo é o facto de que o humanismo contradiga a si mesmo, em vez de se inspirar no acto do amor de Deus. A Igreja em primeiro lugar deve reencontrar a beleza desta inspiração e fazer a sua parte, com entusiasmo renovado.

CONSTRUIR UMA FRATERNIDADE UNIVERSAL

É tempo de relançar uma nova visão para um humanismo fraterno e solidário dos indivíduos e dos povos. Sabemos que a fé e o amor necessários para esta aliança ganham o seu impulso do mistério da redenção da história em Jesus Cristo, escondido em Deus antes da criação do mundo (Ef., 1, 7-10; 3, 9-11; Ci., 1, 13-14). E sabemos também que a consciência e os afectos da criatura humana não são absolutamente impermeáveis, nem insensíveis à fé e às obras desta fraternidade universal, semeada pelo Evangelho do reino de Deus. Devemos pô-la de novo em primeiro plano. Porque uma coisa é sentir-se obrigado a viver juntos, outra é apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto. Uma questão é resignar-se a conceber a vida como luta contra antagonistas que nunca acabam, outro é reconhecer a família humana como sinal da vitalidade de Deus Pai e promessa de um destino comum para o resgate de todo o amor que, desde já, o mantém em vida.

RECONHECER OS SINAIS DE ESPERANÇA

Nesta missão encorajam-nos os sinais da acção de Deus no tempo actual. Eles devem ser reconhecidos, evitando que o horizonte seja obscurecido pelos aspectos negativos. Nesta óptica, São João Paulo II registava os gestos de acolhimento e de defesa da vida humana, a difusão de uma sensibilidade contrária à guerra e à pena de morte, uma atenção crescente à qualidade da vida e à ecologia. Ele indicava também entre os sinais de esperança a difusão da bioética, como “reflexão e diálogo – entre crentes e não crentes, assim como entre crentes de diversas religiões – sobre problemas éticos, inclusive fundamentais, que interessam a vida do homem” (Encíclica Evangelium vitae, 25 de Março de 1995, n.º 27).

O SENTIDO DA VIDA HUMANA

Para compreender o sentido da vida humana, a experiência à qual se referir é a que se pode reconhecer na dinâmica da geração. Deste modo, evitar-se-á que a vida seja reduzida a um conceito apenas biológico ou a um universal abstracto de relações e história. A pertença originária à carne precede e torna possível cada ulterior consciência e reflexão, evitando a pretensão do sujeito de ser origem em si mesmo. Só podemos tornar-nos cientes de estar em vida uma vez que já a recebemos, antes de qualquer intenção e decisão nossa. Viver significa necessariamente ser filhos, aceites e cuidados, mesmo se às vezes de maneira inadequada. “Parece então razoável lançar uma ponte entre o cuidado que se recebeu desde o início da vida, e que lhe permitiu desenvolver-se em todas as suas fases, e o cuidado a prestar responsavelmente aos outros. […] Este vínculo precioso salvaguarda uma dignidade, humana e teologal, que não cessa de viver, nem sequer com a perda da saúde, do papel social e do controle sobre o próprio corpo”.

RESPEITO PELA VIDA HUMANA BRUTALMENTE VIOLADO

Sabemos bem que o limiar do respeito fundamental da vida humana hoje é violado de maneiras brutais não só por comportamentos individuais mas também pelos efeitos de escolhas e de ordenamentos estruturais. A organização do lucro e do ritmo de desenvolvimento das tecnologias oferecem possibilidades inéditas de condicionar a pesquisa biomédica, a orientação educativa, a selecção das necessidades, a qualidade humana das relações. A possibilidade de orientar o desenvolvimento económico e o progresso científico para a aliança do homem e da mulher, para o cuidado da humanidade que nos é comum e para a dignidade da pessoa humana, deriva certamente de um amor pela criação que a fé nos ajuda a aprofundar e a iluminar. A perspectiva da bioética global, com a sua visão ampla e a atenção ao impacto do meio ambiente sobre a vida e a saúde, constitui uma oportunidade notável para aprofundar a nova aliança do Evangelho e da criação…

ORIENTAÇÃO URGENTE DAS NOVAS FRONTEIRAS

Uma ulterior frente sobre a qual é necessário reflectir é a das novas tecnologias hoje definidas “emergentes e convergentes”. Elas incluem as tecnologias da informação e da comunicação, as biotecnologias, as nano-tecnologias, a robótica. Recorrendo aos resultados obtidos pela física, pela genética e pelas neurociências, assim como à capacidade de cálculo de máquinas cada vez mais potentes, hoje é passível intervir muito profundamente na matéria viva. Também o corpo humano é susceptível de tais intervenções que podem modificar não só as suas funções e prestações, mas até as suas modalidades de relação, no plano pessoal e social, expondo-o cada vez mais às lógicas de mercado. Portanto, antes de tudo é preciso compreender as transformações epocais que se anunciam nestas novas fronteiras, para identificar como as orientar ao serviço da pessoa humana, respeitando e promovendo a sua intrínseca dignidade. Uma tarefa muito exigente, dada a complexidade e a incerteza sobre os desenvolvimentos possíveis, que requer um discernimento ainda mais atento de quanto habitualmente se espera…

A TECNOLOGIA E A ALEGRIA DA PARTILHA

A medicina e a economia, a tecnologia e a política que são elaboradas no centro da moderna cidade do homem, devem permanecer expostas também e sobretudo ao juízo que é pronunciado pelas periferias da terra. De facto, os muitos e extraordinários recursos postos à disposição da criatura humana pela pesquisa científica e tecnológica correm o risco de obscurecer a alegria da partilha fraterna e a beleza dos empreendimentos comuns, de cujo serviço obtêm na realidade o seu autêntico significado. Devemos reconhecer que na fraternidade permanece a promessa falhada da modernidade. O alcance universal da fraternidade que cresce na confiança recíproca – no âmbito da cidadania moderna, assim como entre os povos e as nações – está muito debilitado. A força da fraternidade, que a adoração a Deus em espírito e verdade gera entre os homens, é a nova fronteira do Cristianismo. Cada detalhe da vida do corpo e da alma na qual resplandecem o amor e o resgate da nova criatura que se vai formando em nós, surpreende como o verdadeiro milagre de uma ressurreição já em curso….

In Boa Nova, atualidade missionária

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *