Bairro Português em Ayuthaya de cara lavada.
A antiga capital da Tailândia, Ayuthaya (Ayudhaya), está hoje, uma vez mais, sob a luz dos holofotes da curiosidade mundial, com o aproximar dos 500 anos do primeiro Tratado de Comércio e Amizade entre o então Reino do Sião (no reinado de Ramathibodi II) e Portugal, um país ocidental. Os termos do acordo de amizade e cooperação mútua foram negociados entre Junho e Dezembro de 1518, estando a ser preparada uma celebração condigna de tal feito histórico.
Ramathibodi II há vários anos (desde pelo menos 1511) que contava com a colaboração de mercenários, comerciantes e religiosos portugueses, na sua maioria provenientes de Malaca em busca de mais fontes de receita e de gentios para converter ao Catolicismo. O passar do acordo ao papel foi apenas uma mera formalidade do respeito que existia entre as duas partes e o desejo de que os proveitos fossem mútuos e duradouros. A comitiva portuguesa, enviada a mando do Vice-Rei da Índia, em representação da Coroa em Lisboa, passou meio ano na antiga capital Ayuthaya e regressou com um documento onde se estipulavam os pormenores do acordo entre os dois monarcas. A ratificação da parte tailandesa foi imediata, mas devido às distâncias a parte portuguesa teve de enviar os documentos para a capital do Reino para apostar o Selo Real.
Apesar das diferenças temporais, a verdade é que os termos trouxeram benefícios a ambos os lados. Os tailandesas recebiam a segurança de saber que podiam contar com o apoio militar português, na já conturbada situação com os birmaneses e outros vizinhos beligerantes, além de também ficar assegurado o acesso a todo o conhecimento que tanto os comerciantes como os mercenários e os religiosos traziam, e que em muito iriam contribuir para o desenvolvimento económico, social e tecnológico do Reino do Sião. O Bairro Português, esse, foi oficializado pelo Rei Chairacha em 1540, por Decreto Real, cedendo o terreno aos portugueses e garantindo-lhes liberdade religiosa.
Na verdade, embora existam diversas referências ao facto do dito acordo ter sido passado a escrito, é consensual que os documentos da parte portuguesa tenham ficado destruídos durante o terramoto de Lisboa em 1755. Quantos aos documentos da parte tailandesa, apesar dos esforços de alguns investigadores tailandeses, ainda não foram descobertos dado a maioria dos documentos reais desse período conturbado – terminou com a destruição daquela que era descrita como a Paris do Oriente – não estarem classificados. A última invasão birmanesa destruiu, por completo, a capital siamesa, obrigando a família real e a maioria dos habitantes a fugir. O destino foi a actual capital do Reino, Banguecoque. Inicialmente, o Rei Taksin instalou-se do lado esquerdo do reino Chaopraya, hoje distrito de Thonburi, tendo a capital e o respectivo Palácio Real sido transferidos para a margem direita, dando assim origem à cidade de Banguecoque.
Na debandada de Ayuthaya o Rei Taksin levou os seus colaboradores, juntamente com a família real que havia sobrevivido. Entre os colaboradores estavam chineses, indianos e também portugueses; para cada grupo étnico foi reservado uma zona da nova cidade.
BAIRROS PORTUGUESES
De cariz luso, nascia o Bairro de Santa Cruz e Santa Conceição, com as respectivas igrejas e o típico casario indo-português. Estes bairros ainda hoje existem, mas infelizmente apenas o de Santa Cruz consegue manter alguma identidade. Os restantes foram assimilados pela expansão da influência da comunidade chinesa no Reino. Aliás, o próprio Rei Taksin era mestiço de etnia chinesa, assim como todos os reis subsequentes da Dinastia Chakri que ainda hoje está no poder.
Voltando a Ayuthaya e ao renascimento do interesse da comunidade histórica mundial, agora que se aproxima a data dos cinco séculos da assinatura e negociação do acordo com Portugal, o bairro português da antiga capital está de “cara lavada”.
O Ban Portuguet (romanização do Tailandês para Bairro Português) chegou a albergar mais de três mil luso-descendentes, segundo alguns historiadores – outros mais modestos apontam para cerca de mil. Para uma comunidade de um pequeno país tão longínquo, numa capital que tinha mais de um milhão de almas, era um feito com importância e que os decisores tailandeses nunca deixaram de ter em consideração. Em Ayuthaya existiam, além dos bairros dos “tais”, os bairros dos chineses, indianos, japoneses, holandeses e portugueses. Os portugueses haviam caído nas boas graças da Família Real, com todas as vantagens que isso trazia, sendo a maior comunidade ocidental.
Na minha última passagem pelo local, em 2012, apenas existia a igreja de São Pedro, com as ossadas escavadas na nave central, e as ruínas das habitações dos clérigos do Bairro nas imediações da igreja. Há dados históricos de outras duas igrejas (uma dominicana, outra franciscana), mas as autoridades do País, apesar de todos os esforços de escavação arqueológica nos últimos anos, nada conseguiram encontrar até ao momento que justifique avançar com um processo de desapropriação dos habitantes da zona. De quando em vez são encontrados artefactos, pelo que se houver vontade poder-se-á fundar, a breve trecho, um centro interpretativo da presença portuguesa no Sião. Para quem conhece a cidade, trata-se de um projecto semelhança ao que já existe nos antigos bairros japonês e holandês.
Para os responsáveis culturais da Tailândia é essencial que haja um local onde os turistas se possam deslocar e se aperceberem da realidade de há 500 anos – mais uma forma de reforçar a divulgação dos laços centenários entre a Tailândia e Portugal.
Esta ano visitei Ayuthaya com amigos chineses de Macau (sempre que vou à antiga capital faço-o acompanhado de amigos curiosos que querem ficar a conhecer um pouco mais do rico passado português no Oriente) e deparei com um novo muro e uma bonita muralha a delimitar a zona. Em destaque, um painel central a indicar o nome do local em Tailandês e Inglês (Portuguese Village), faltando – inexplicavelmente – a designação em Português. As instalações sanitárias estavam abertas aos público, apresentando-se limpas, e há um parque de estacionamento e uma zona ajardinada bem cuidada. Fiquei surpreendido ao saber que os responsáveis governamentais da Tailândia nutrem grande interesse pelo Bairro Português, a ponto de defenderem que o Governo de Portugal, através dos seus órgãos ligados à cultura, e a Embaixada de Portugal em Banguecoque devem ter um papel mais activo no desenvolvimento de todas as medidas que afectam o Bairro Português. Para breve está a colocação de nova sinalética, desde as entradas da cidade até ao centro, para guiar os turistas que queiram visitar o legado português.
Quando está para breve a celebração dos 500 anos do Tratado de Amizade, bem que todos os esforços merecem ser incentivados. Até ao momento, tudo indica que os resultados são positivos. De acordo com os números oficiais, os visitantes têm aumentado, pelo que o futuro se assemelha risonho para a presença lusa nesta parte do Reino da Tailândia.
João Santos Gomes