A Flauta e a Lua: duas imagens para aprofundar o nosso Advento
Um autor cristão, John Orberg, escreveu certa vez: “O problema de passar a vida a subir a escada é que cruzamos com Deus, pois nesse momento Ele estará a descer”. Subir a escada significa adquirir uma boa posição social, poder e riqueza, o que não são coisas más em si. Podem, no entanto, tornar-se problemáticas quando as utilizamos de forma contrária aos ensinamentos do Evangelho. É preciso ter cuidado para não espezinharmos os outros, especialmente os pobres e fracos. Durante o Advento, somos convidados a remodelar o nosso sistema de valores e a aceitar a ideia de que Deus desce a escada para uma posição de humildade e serviço.
O termo teológico para descrever a Encarnação é “kenosis” – palavra grega que significa “esvaziamento”. Refere-se à escolha de Jesus em assumir plenamente a nossa humanidade, renunciando aos Seus atributos divinos, embora permaneça Deus.
No Evangelho deste Domingo (João 1, 6-8, 19-28), iremos ler sobre o episódio em que João Baptista aceita o seu próprio “esvaziamento”, a fim de estar em linha com as escolhas de Deus. João poderia ter subido a escada do “estrelato religioso”, atribuindo a si mesmo um papel de grande poder (“Eu sou aquele enviado por Deus para te salvar!”). Ao invés, negou qualquer título, tendo simplesmente afirmado sobre si mesmo: “Eu sou apenas a voz que clama no deserto, exortando-vos a estarem prontos para receberem Aquele cuja correia da sandália não sou digno de desatar”.
Gosto da metáfora de ser “a voz”. Lembra-me a imagem usada pelo grande poeta Rabindranath Tagore numa das suas orações: “A minha vaidade de poeta morre de vergonha perante o seu olhar. Ó mestre poeta, eu me sentei aos seus pés… Permita apenas que eu torne a minha vida simples e recta, como uma flauta de bambu, para que vós possais preenche-la com música”.
Para permitir que a Boa Nova da vinda de Deus, como “Emanuel” (“Deus connosco”), fosse ouvida entre o povo de Israel, João teve primeiro de se “esvaziar” e manter o próprio ego sob controlo. Só assim ele poderia dirigir a atenção das pessoas para Jesus, e não para si mesmo. Ao fazê-lo, a atitude de João Baptista estabeleceu um padrão que ainda é relevante para qualquer actividade missionária: não pode haver uma proclamação credível do Evangelho sem um prévio esvaziamento de nós mesmos. Todos os cristãos devem tornar-se flautas vazias e rectas nas mãos de Deus para que a melodia do Evangelho ressoe em todos os cantos do mundo.
«Ele [João Baptista] não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz» (versículo 8). Este versículo não descreve apenas a vida de João Baptista, mas também a missão confiada à Igreja em relação ao mundo. Os primeiros Padres da Igreja referiam-se à Igreja como “Mysterium Lunae”, uma expressão latina que se traduz “Mistério da Lua”. A Lua era encarada como um símbolo da Igreja, pois tal como a Lua, a Igreja não é fonte da sua própria luz, mas antes reflecte a luz de Cristo para o mundo.
O Papa Francisco recordou muitas vezes à Igreja a necessidade de estarmos humildemente conscientes desta realidade, como o fez João Baptista ao longo de toda a sua vida. Num famoso discurso, proferido durante o conclave que acabou por o elegê-lo Papa, afirmou: “Quando a Igreja é auto-referencial, inadvertidamente, ela pensa que tem a sua própria luz. Deixa de ser ‘Mysterium Lunae’, o Mistério da Lua. A Lua brilha na escuridão da noite, mas a Lua recebe a luz do Sol. O Sol brilha na Lua, que então pode iluminar a escuridão. A Igreja foi criada para fazer exactamente isto: para pegar a luz de Cristo e trazê-la para as trevas do mundo. Quando a Igreja, ao contrário, se volta para si mesma e é auto-referencial, ela cede ao grande mal do mundanismo espiritual, que só dá glória uns aos outros, e pode pensar que está satisfeita consigo mesma e que tem tudo o que precisa”. No mesmo discurso, Francisco acrescentou: “Quando a Igreja não sai de si mesma para evangelizar, torna-se auto-referente e depois adoece. Os males que ao longo do tempo acontecem nas instituições eclesiais têm a sua raiz numa auto-referência e numa espécie de narcisismo teológico”.
Nas noites seguintes às celebrações do Natal, se a meteorologia o permitir, veremos a Lua cheia a brilhar no céu. Durante estes últimos dias do Advento, à medida que a Lua nova continua a crescer, reflectamos cada vez mais sobre o amor de Cristo por meio das nossas escolhas e acções, e deixemos que a Boa Nova da proximidade de Cristo à humanidade ressoe cada vez mais através do nosso humilde espírito de serviço.
Pe. Paolo Consonni, MCCJ