Estaria Jesus louco, ou simplesmente a ir contra a corrente?
Jesus voltou para casa com os Seus discípulos (…) Quando a família soube, saiu para O reter, pois as pessoas diziam: «– Ele enlouqueceu!». E os escribas, que tinham descido de Jerusalém, acrescentaram: «Ele está possuído por Belzebu! (…) É pelo príncipe dos demónios que ele expulsa os demónios» (Mc., 3, 20-22).
Nos últimos meses, temos visto com frequência nos jornais artigos sobre uma crescente crise de saúde mental em Macau, sobretudo entre os jovens. A pandemia e as mudanças sociais pós-pandémicas aumentaram o nível de ansiedade de muitas pessoas, exasperando as fragilidades interiores e as tensões relacionais, em particular no seio das famílias.
Tanto o Governo, como as agências privadas, incluindo a Cáritas, estão a tentar aumentar os serviços profissionais destinados ao público nesta área, mas não é fácil para as pessoas necessitadas procurarem ajuda profissional devido ao estigma que acompanha quem sofre problemas de saúde mental. As pessoas com este tipo de problemas são, geralmente, consideradas pelos padrões sociais “normais” como disfuncionais, defeituosas, destroçadas ou, nos casos mais graves, loucas. Em qualquer dos casos, a expectativa é que após a recuperação possam voltar a ter uma vida “normal”.
Todas as pessoas com perturbações mentais devem procurar cuidados médicos e terapia adequados. No entanto, por vezes penso que aqueles que são vistos como “loucos”, fora do “normal”, têm, em alguns casos, um papel social importante a desempenhar, porque as suas dificuldades em se adaptarem a um modo de vida mais “convencional” sublinham o facto de que, em alguns casos, o que consideramos “normal” é, pelo contrário, bastante tóxico, como a falta de amor em algumas famílias, as condições de trabalho altamente stressantes, a pressão académica insalubre, as injustiças decorrentes da desigualdade de rendimentos, a prioridade individualista e materialista sobre a comunidade, o significado e o equilíbrio, o vazio espiritual e cultural, etc. A loucura é, de certa forma, uma chamada de atenção para reconsiderar se as nossas sociedades são saudáveis ou não.
Não me surpreende que no Evangelho deste Domingo (Mc., 3, 20-35), Jesus tenha sido considerado louco e acusado de estar possuído pelo demónio. A história mostra que rotular de disfuncionais os indivíduos que apresentam novos valores e ideias é uma estratégia regularmente utilizada por aqueles que os querem desacreditar para manter o status quo. No caso de Jesus, tinham razões de sobra para o fazer. Jesus expunha regularmente a hipocrisia e a opressão no seio do “establishment” social e religioso. Desafiou a interpretação legalista da lei feita pelos fariseus. Apoiava aqueles que eram marginalizados devido à sua pobreza, doença ou estatuto moral. Para além disso, afirmou blasfemamente ser de origem divina.
Mesmo nos últimos dois séculos, dominados pelo cientismo ideológico, a questão de saber se o Jesus histórico estava em boa saúde mental foi explorada por múltiplos psicólogos, filósofos e historiadores, principalmente com a intenção de desacreditar a Sua mensagem. Consideraram Jesus epiléptico, paranóico, com alucinações e delírios religiosos megalómanos, ou mesmo esquizofrénico. O Papa Bento XVI observou, no entanto, que nada disto se encontra no texto dos Evangelhos. Estas tentativas de esboçar o Jesus histórico como patológico reflectem mais os preconceitos dos autores do que a realidade histórico-bíblica. “Os textos bíblicos não nos dão nenhuma janela para a vida interior de Jesus”, escreveu Bento XVI. “Jesus está acima da nossa psicologização”, refere em “Jesus de Nazaré. Do Baptismo no Jordão à Transfiguração”.
Jesus deu, de facto, uma outra leitura alternativa da realidade e daquilo que constitui a essência da nossa relação com Deus. A lógica do Evangelho, que é a lógica da Cruz, desafia constantemente o nosso modo de viver e de acreditar. A unidade da divindade e da humanidade em Jesus fez Dele uma personagem difícil de decifrar, nem mesmo pelos Seus seguidores mais próximos, que Ele considerava como a Sua nova família. Também eles levaram tempo a absorver a Sua mensagem e a adoptar o Seu modo de vida.
No entanto, após a Ressurreição, esses mesmos seguidores não se tornaram agentes de desordem e destruição, como seria de esperar de alguém que segue um líder “disfuncional”. Pelo contrário, contribuíram para restaurar os valores morais e sociais numa sociedade que estava em total decadência. O Seu modo de vida era, de facto, “anormal”, para um ponto de vista contemporâneo, mas, em retrospectiva, extremamente saudável (de um modo geral: houve certamente excepções!). Recuperaram a sacralidade do casamento numa época em que a promiscuidade sexual era comum. Consideravam todos como irmãos e irmãs, independentemente do seu estatuto social, mesmo os escravos. Partilhavam as suas riquezas e cuidavam dos que eram socialmente marginalizados. Quando perseguidos, perdoavam os seus inimigos, mesmo os seus carrascos, e nunca fomentavam o ódio enquanto testemunhavam as suas crenças. Mantiveram o pensamento racional em busca da verdade quando muitos outros sistemas filosóficos se desmoronaram no caos cultural.
Também nós vemos o caos à nossa volta, disfarçado de “normalidade”, neste período da História. Como membros da nova família de Jesus, os cristãos de hoje são mais uma vez chamados a ir contra a corrente e a mostrar que “a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria humana, e a fraqueza de Deus é mais forte do que a força humana” (cf. 1 Cor., 1, 21-25).
Pe. Paolo Consonni, MCCJ