Por que razão dão nome a duas igrejas de Macau?
Hoje vamos falar de dois santos da Igreja Católica. Duas figuras de santidade de suma importância na Igreja e, curiosamente, em Macau, onde se acham, sob o seu orago, duas magníficas igrejas históricas e emblemáticas. Uma delas é sede de paróquia, a outra já teve convento e está hoje na paróquia da Sé, ambas bem no centro do pulsar do território. Falamos de São Domingos (de Gusmão), Festa a 8 de Agosto, e de São Lourenço, com Festa a 10 de Agosto. Outra curiosidade, ambos nasceram no que é hoje o Reino de Espanha.
SÃO DOMINGOS DE GUSMÃO – Nasceu a 8 de Agosto de 1170, de acordo com o antigo Calendário Juliano (no actual, teria sido a 24 de Junho), em Caleruega, no antigo Reino de Castela, vindo a falecer em Bolonha, na actual Itália, a 6 de Agosto de 1221 (no Calendário Juliano). Oriundo da Nobreza, cedo mostrou apetências religiosas, pelo que em 1189 foi estudar para Palência, no Estudo Geral. Em 1196 é assinalado já como membro do Cabido da catedral da sua diocese de Osma, estando já por isso ordenado presbítero.
Em 1203, o rei de Castela solicitou ao bispo de Osma que fosse à Dinamarca negociar o casamento do príncipe com uma princesa dinamarquesa, viagem que terá ocorrido em 1205. Domingos acompanhou o bispo, D. Diego de Acebes. O mesmo faria numa segunda viagem, pouco mais de um ano volvido, mas desta feita deteve-se no Sul de França, onde deparou com a forte presença dos cátaros, ou albigenses, que eram considerados hereges. Até 1215, ou 1216, esteve activo na região, a pregar a fé cristã aos cátaros, tendo obtido alguns resultados e suscitado a atenção da Igreja, que lhe concedeu bispados como prémio, todos, porém, recusados pelo presbítero.
Conseguiu mais do que vagas sucessivas de pregadores enviados pela hierarquia da Igreja, que também devido a factores políticos e a estratégias “missionárias” deficientes não obtiveram resultados. Assim, neste contexto, fundou Prouille, em 1206, a primeira comunidade “dominicana”, resultante de um grupo de mulheres cátaras convertidas por Domingos. Em 1215 fundou, em Toulouse, uma comunidade de pregadores, que desejava que não ficasse circunscrita a uma diocese, mas que se tornasse mais universal. Vencidas as resistências do Papa Inocêncio III e do IV Concílio de Latrão (1215) em relação a novas ordens religiosas, Domingos, em 1216, fundou oficialmente a Ordem dos Pregadores, ou Dominicanos, que depressa enxamearia pelos reinos da cristandade e depois passou os mares na missão dita ad gentes, mas não apenas. Até à morte, a 6 de Agosto de 1221, foi Mestre Geral da ordem mendicante que fundou, que cada vez mais se consagrava aos estudos teológicos e à missão. Tem festa litúrgica a 8 de Agosto, data da sua Missa Nova (no Calendário Romano Tradicional, a Festa era a 4 de Agosto). Foi canonizado a 2 de Julho de 1234, em Roma, pelo Papa Gregório IX.
Em 1587, os filhos de São Domingos, oriundos de Acapulco, México, chegariam a Macau, onde ainda permanecem, desde então, mau grado algumas incidências históricas que os possam ter afastado do território. Aqui fundaram o convento e a igreja de São Domingos, ou igreja de Nossa Senhora do Santíssimo Rosário, ao qual está anexo o Museu do Tesouro de Arte Sacra de São Domingos. Todas as procissões ali param em Macau, na igreja que começou numas casinhas de madeira (curiosamente, a população chinesa ainda hoje chama à igreja “Pán chong miu” 板樟廟, ou “templo de tabique”) e que depois se erigiu na sólida edificação que conhecemos, a partir de 1590, reconstruída na sua configuração actual a partir de 1721. A reconstrução adveio nos anos 90 do Século XX, na forma que a admiramos hoje.
SÃO LOURENÇO – Saindo de São Domingos para poente, rumando ao Porto Interior, deparamos, no alto de uma pequena colina, com a igreja de São Lourenço, cabeça de uma das paróquias históricas de Macau, uma das mais centrais, sendo que por isso acolhe na sua circunscrição a Sede do Governo da RAEM, entre outras instituições importantes.
São Lourenço, cujo nome advém do termo “louro”, ou “loureiro”, atributo dos vencedores, foi um mártir cristão, natural de Huesca, ou Valência, no que é hoje Espanha, onde terá nascido a 6 de Dezembro de 225, vindo a falecer, martirizado, em Roma, a 10 de Agosto de 258. As informações que conhecemos acerca de Lourenço foram narradas por Santo Ambrósio, Santo Agostinho e pelo poeta Prudêncio. Lourenço foi um dos sete diáconos de Roma, ou seja, um dos sete homens de confiança do Sumo Pontífice. O seu trabalho era de grande responsabilidade, pois era o encarregado de esmolar os pobres e amparar viúvas.
No ano de 257, o imperador Valeriano publicou um decreto de perseguição no qual ordenava que qualquer pessoa que se declarasse cristã seria condenada à morte. No dia 6 de Agosto, o Papa São Sisto celebrava a Santa Missa num cemitério de Roma quando foi assassinado juntamente com quatro dos seus diáconos pela guarda do imperador. Quatro dias depois, o diácono Lourenço foi martirizado. Quando viu o seu bispo, o Papa Sisto, morrer, sentindo o perigo, mas abrasado pela fé e pelo iminente martírio, Lourenço recolheu todo o dinheiro e outros bens que a Igreja tinha em Roma e distribuiu-os pelos pobres. Objectos como cálices de ouro, cibórios, além de valiosos candelabros, todos reverteram para as pessoas mais necessitadas. A lenda refere que recolhera todos esses bens a mando do governador de Roma, que queria angariar dinheiro para custear uma guerra. Lourenço pediu-lhe três dias para reunir todos os tesouros da Igreja, mas nesse período de tempo convidou todos os pobres, aleijados, mendigos, órfãos, viúvas, idosos, mutilados, cegos e leprosos que ajudava com as esmolas, juntou-os e chamou o dito governador, pagão, dizendo, ao olhar para o cortejo de pobreza e doença à sua frente, que tinha de facto reunido os tesouros da Igreja. Enraivecido, o pagão mandou martirizar o jovem diácono, de forma lenta e dolorosa, numa grelha em brasas.
Santo Agostinho – também dá nome a outra igreja de Macau – refere que Lourenço enfrentou o martírio com dignidade e tranquilidade, rezando e pedindo por Roma. Prudêncio confirma os valores de Lourenço, principalmente de conversão e reforma de costumes dos pagãos, de todas as classes sociais. Foi um dos grandes conversores de Roma ao Cristianismo. Os Papas mandaram construir-lhe uma bela basílica em Roma, a Basílica de São Lourenço, a quinta em importância da Cidade Eterna.
Lourenço é orago também desta bela igreja de Macau, onde os caminhos históricos da cidade se encontram, onde China e Europa se mesclaram ao longo dos séculos. A sua construção começou em 1558, obra dos jesuítas, estando já ao culto em 1618, embora o edifício que hoje contemplamos date da reconstrução de 1801-1803, merecendo obras de melhoramento em 1846 e depois em 1897-1898, além de 1954. Entre a população chinesa, é conhecida por “Feng Shun Tang” (“igreja dos Ventos de Navegação Calma”), pois nas suas escadarias as famílias dos marinheiros esperavam que os seus assomassem no horizonte, sãos e salvos.
Vítor Teixeira
Universidade Fernando Pessoa