O bispo dos pobres.
Nascido em Coimbra, à semelhança do beatificado Gonçalo de Amarante – reverenciado em Portugal e no Brasil – e com um invejável palmarés académico (foi reitor de uma escola que ajudou a fundar em Évora e que mais tarde se tornaria uma das mais prestigiadas universidades do seu tempo), Melchior arribou ao pequeno porto do delta do Rio das Pérolas em Maio 1568, após uma longa viagem marítima.
Considerada inadequada a pequena residência dos jesuítas (a única existente) foi construída uma casa de madeira para servir de palácio episcopal. Situar-se-ia onde hoje se erguem os edifícios 5 e 7 da Rua de Santo António, e era constituída por uma pequena capela e algumas moradias. Após a morte de Melchior Carneiro, as ditas moradias “seriam doadas a Luís de Castro e à sua esposa Isabel da Rocha”. Deste casamento nasceu uma filha que esposaria um tal “Martim da Rocha Barros que, por escritura elaborada em 29 de Abril de 1599, vendeu por 40 taels de prata, o terreno existente entre estas casas e o Colégio de São Paulo ao seu reitor, o padre Manuel Dias”, que precisava de tal terra para o desenvolvimento da já prestigiada escola.
Em 1575, Melchior Carneiro escreveu ao seu superior o seguinte: “Quando cheguei a este porto conhecido como Nome de Deus, havia aqui algumas casas portuguesas e várias casas de cristãos locais”.
Preocupado com possíveis ameaças à Igreja Católica, quer da parte de “nativos pagãos” capazes de “desprezar a religião de Cristo, se tivessem a oportunidade”, quer da parte de alguns “comerciantes ricos e poderosos”, habituais causadores de escândalos, Melchior decidiu criar instituições com fundamentos sólidos e de interesse social. De resto, como o próprio afirma numa carta: “Quando cheguei, abri um hospital que admitia cristãos e pagãos. Também criei uma Confraria da Misericórdia, semelhante à Associação de Caridade em Roma, para prover todos os pobres e outras pessoas necessitadas”.
Na verdade, Melchior Carneiro fundou a Santa Casa da Misericórdia (ainda hoje muito activa) e dois hospitais: o Hospício dos Leprosos, anexado à Capela de Nossa Senhora da Esperança, vulgarmente conhecida pelo nome de São Lázaro, e o Hospital dos Pobres, chamado São Rafael, onde está hoje instalado o Consulado de Portugal.
Convém recordar que a diocese de Macau da época incluía o Japão e a China. No seu livro Oriente Conquistado, o padre Francisco de Sousa diz-nos que o bispo de Coimbra governou com “pobreza apostólica”, usando na missa um cálice de chumbo “por não ter dinheiro para fazer um prata”. Dando grande exemplo como cristão, Melchior viveu sempre com “extrema humildade e caridade”.
Nessa altura (meados de 1579) chegou a Macau, vindo de Cochim, o jesuíta italiano Miguel Ruggieri, que imediatamente se empenhou no estudo da língua chinesa. Era seu objectivo informar-se acerca de todos os aspectos da terra e do dia-à-dia da gente que negociava com os portugueses. Por isso, sempre que estes viajavam até à feira de Cantão, ele acompanhava-os, exercitando-se nessa linguagem de difícil pronúncia e, em certos casos, obtendo a benevolência e simpatia dos dirigentes chineses. Alguns deles – por simples curiosidade – viajariam até Macau e houve quem se convertesse à fé cristã. Para poder instruí-los, Ruggieri fundou uma casa de catecúmenos dedicada a São Martinho. Francisco de Sousa informa-nos que o padre italiano despendeu “nesse esforço para cima de trezentos cruzados”.
Nesse mesmo ano foi celebrado em Macau a primeira ordenação sacerdotal, apesar da “falta de óleos necessários para o exercício do sacramento”, que seriam providenciados por alguns frades capuchinhos chegados da Nova Espanha (o correspondente aos Estados sulistas dos EUA, México e a maior parte da América Central). Impedidos de entrar na China, “onde pretendiam pregar o Evangelho”, os frades espanhóis decidiram instalar-se em Macau. Graças a esses capuchinhos, Francisco Laguna, Miguel Vaz, Ayres Sanches e Luís de Almeida – este último com um impacto considerável no Japão – foram ordenados sacerdotes.
Frei H. Bernard descreve o primeiro bispo de Macau como “obstinado e discreto” ao ponto de estar pronto para “desaparecer nas sombras” em nome do sucesso da evangelização. Poucos meses depois da sua chegada, era já imensamente popular entre os membros do clero, que apreciavam a sua extrema bondade. Melchior abdicou de quase todas as benesses inerentes ao cargo que ocupava. Exortou os mandarins a permitir que os missionários abrissem uma casa em Cantão e com, essa intenção, foi duas vezes a essa cidade. Porém, como observou o autor do Oriente Conquistado, “os chineses sempre temeram que os portugueses poderiam usar esse meio para fazer na China o que tinham feito na Índia”.
Em Goa – onde chegou em 1555 num barco capitaneado por Francisco Figueira de Azevedo, grande amigo de São Francisco Xavier – Melchior Carneiro ocupou o posto de Patriarca da Etiópia, atribuído por Inácio de Loyola, que tinha o bispo em grande estima. Dedicou-se ao ensino em Goa e Cochim, onde sofreu a perseguição de judeus e simpatizantes de um bispo do rito sírio-malabar. A asma, de que padecia, seria a causa da sua morte, a 19 de Agosto de 1583, “porque, como não estava comendo, não tinha forças para jogar fora um escarro que bloqueava sua garganta”.
Melchior Carneiro era considerado por todos como um verdadeiro santo.
Joaquim Magalhães de Castro