Coração macaense repartido.
Em Portugal desde os anos sessenta, onde exerceu toda a vida profissional (com excepção de uma comissão de serviço em Macau nos anos noventa), Maria João Santos Ferreira, formada bibliotecária, foi na gastronomia macaense que encontrou a sua grande paixão.
Numa conversa animada no espaço Time-Out, na zona do Cais do Sodré, em Lisboa, Maria João foi discorrendo sobre a sua terra natal. Macaense dos sete costados, de uma família bem conhecida em Macau (a família Santos Ferreira), foi com um saudosismo saudável que falou dos tempos de infância e dos amigos que ficaram para trás quando, em 1966, se mudou para Portugal para continuar os estudos. No Oriente deixou uma vida completamente diferente, que tinha como referência central os estudos e a camaradagem no antigo Liceu Nacional Infante D. Henrique, onde muitos macaenses estudaram. Aliás, existe mesmo no Facebook uma página com membros que estudaram neste liceu e ali vão reencontrando amigos e trocando memórias de tempos passados.
Maria João, hoje reformada e dedicada à causa das letras, com especial ênfase na pesquisa sobre assuntos relacionados com Macau, e ainda mais focados na gastronomia macaense (que inclusivamente deu origem à primeira tese de doutoramento a nível mundial a versar esta temática), vai a Macau quase todos os anos e participa, mesmo à distância, no que vai acontecendo a nível cultural.
A’O CLARIM abordou diversos temas – alguns deles não podem ser reproduzidos por não caberem no âmbito da entrevista – mas não quis deixar passar a oportunidade para frisar que «Macau precisa de apostar mais no turismo gastronómico e em diversificar o produto turístico». Puxando a brasa à sua sardinha e valendo-se dos galões da tese de doutoramento, reconhece que «a gastronomia macaense está subvalorizada e que o Governo deveria dar mais atenção a este nicho de mercado pois há interesse por parte dos turistas. Havendo interesse, tem de haver uma resposta do Governo» para que a lacuna seja remediada.
Filha e neta de macaenses, sobrinha do conhecido poeta Adé dos Santos Ferreira, publicou em 1993 a sua primeira aproximação à culinária de Macau. O Tánto Ancuza Dóci (Tanta coisa doce) é uma colectânea de receitas doces baseada em poemas do tio Adé. Passados catorze anos, em 2004, “O Meu livro de cozinha”, editado pela APIM, veio colmatar uma lacuna no panorama documental da gastronomia da ex-colónia portuguesa e, dois anos mais tarde, na senda destas iniciativas, participa com “A gastronomia macaense através dos tempos” na conferência internacional sobre a arte culinária de Macau organizada no território. Esta comunicação contou já com alguns dos dados que havia recolhido, tendo em vista a tese de doutoramento “A Gastronomia Macaense no Turismo Cultural de Macau”.
Maria João Santos Ferreira defende que «para se manter um equilíbrio no “status quo” do território, para que não fique igual a qualquer outra cidade do interior da China, a gastronomia macaense tem de ser revitalizada, apoiada e acarinhada pelas entidades oficiais». Acrescenta mesmo que «deveria haver legislação específica que obrigasse os restaurantes a oferecerem pratos macaenses. O que existe actualmente para os restaurantes dos hotéis de luxo, que os obriga a terem nos menus um prato de comida portuguesa ou macaense, não é suficiente», salienta Maria João. «Isto porque vamos ao Hotel Lisboa, por exemplo, e encontramos minchi, ou porco bafassá. Mas, na sua maioria, optam por inserir um caldo verde (que não é macaense) ou umas tapas de presunto preto (que nada tem a ver com Macau também) e assim dão a volta à lei».
A investigadora concorda que «a gastronomia macaense não consegue ser rentável visto que, na sua maioria, os pratos demoram muito tempo a ser confeccionados e precisam de ingredientes específicos. Não que a sua confecção seja dispendiosa monetariamente. Por exemplo, o Diabo é feito com restos de outras refeições, mas torna-se complicado para um restaurante, sem apoios ou incentivos da parte do Governo, conseguir tirar rentabilidade do investimento que é necessário tanto monetário como de tempo».
A solução poderá passar, muito simplesmente, pela «criação de circuitos que incluam os restaurantes de gastronomia macaense existentes em Macau. Assim, com esse apoio implícito do Governo, a par de outros que possam ser criados, o património imaterial que é a gastronomia macaense poderia ser mais conhecido por quem visita o território e dar origem a outros restaurantes, para além da criação de mais postos de trabalho e do surgimento de outras atracções turísticas».
Maria João é apologista da «criação de um museu da gastronomia macaense onde os visitantes possam ficar a conhecer melhor este aspecto de Macau, seja através de mostras das receitas (provas), ou de um espaço onde se possam ver os utensílios antigos e outros aspectos relacionados com este aspecto identificador da comunidade macaense. Paralelamente, deveria ser criado um museu virtual dedicado à mesma temática, tomando por base, por exemplo, o projecto DIAITA, que nasceu para o Património Alimentar da Lusofonia em 2012 na Universidade de Coimbra».
Mas as iniciativas não devem ficar por aqui e a académica sugere que «o receituário da culinária macaense seja traduzido para Chinês, para que a divulgação se torne mais abrangente, pois só assim se pode garantir a sua sobrevivência no futuro».
Maria João Santos Ferreira é a segunda de sete irmãos. Deixou Macau em 1966 para continuar os estudos em Portugal. Formou-se na Universidade de Lisboa, casou em 1973 e regressou a Macau no início dos anos 90 para uma comissão de serviço que a fez passar por diversos departamentos do Governo local, tendo regressado a Lisboa em 1993. Agora, reformada e viúva, vai a Macau quase todos os anos, onde a sua irmã Fátima lhe guarda, religiosamente, todos os jornais que ela lê, recorta e guarda para investigações futuras.
JOÃO SANTOS GOMES