«O Ano Novo Lunar constitui uma oportunidade para conciliar fé e cultura»
Para os católicos chineses, o Ano Novo Lunar é a ocasião adequada para agradecer a Deus pelas graças concedidas durante o ano anterior, mas também para harmonizar o esplendor da fé e o intemporal apelo da cultura chinesa. O veredicto é do padre Joseph Liang. O sacerdote, responsável pelo acompanhamento espiritual da comunidade chinesa na diocese britânica de Westminster, entende que não existe oposição efectiva entre a vivência da fé e a celebração do Festival da Primavera, desde que determinados rituais – sobretudo os associados ao culto dos antepassados – sejam evitados. Capelão da comunidade católica chinesa em Londres, o padre Joseph Liang em entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM – As comunidades chinesas espalhadas pelo mundo assinalaram com pompa e circunstância a entrada no Ano Lunar da Serpente. Que tipo de dilemas coloca a celebração do Ano Novo Lunar aos católicos, tanto na China como na diáspora?
PADRE JOSEPH LIANG – Os católicos na China celebram o Ano Novo Chinês, sendo este um evento cultural com grande significado, que coloca ênfase na unidade familiar, na gratidão e na esperança de que possam ser ungidos pela graça divina. Ao invés de se debaterem com um eventual dilema, muitos católicos chineses vêem esta celebração como uma oportunidade para harmonizar a sua fé com a sua identidade cultural. Eles incorporam com frequência rituais religiosos ou bênçãos nos festejos, com o propósito de expressar gratidão a Deus, sem deixar de manter os costumes e tradições. A celebração do Ano Novo Lunar é, antes de qualquer outra coisa, um evento de natureza cultural. Não é uma celebração religiosa. O foco está direccionado para as reuniões familiares, a homenagem aos antepassados, a obtenção de bênçãos e a promoção da harmonia. Os católicos na China celebram habitualmente o Ano Novo Lunar porque constitui uma oportunidade para conciliar fé e cultura. Portanto, o Ano Novo Chinês e a fé católica são harmonizados e os católicos o que fazem é expressar gratidão a Deus quando participam nas celebrações. Se bem que a maior parte dos aspectos dessas celebrações tenham uma dimensão meramente cultural, há uma prática que os pode confrontar com um dilema. Os católicos na China têm de encarar a questão do culto dos antepassados durante o Ano Novo Lunar, até porque honrar os antepassados é um aspecto central das tradições de ano novo.
CL – Que cuidados devem, então, ter os católicos chineses perante a memória dos que os precederam?
P.J.L. – Como se sabe, o culto dos antepassados na China foi contestado pelos missionários católicos e desafiado pela modernização dos costumes. Nos Séculos XVII e XVIII, os missionários católicos começaram a debater se o culto chinês dos antepassados tinha uma natureza e se era, assim, incompatível com o Catolicismo. O Vaticano emitiu um édito em 1692 em que bania o culto dos antepassados. Aos católicos chineses deixaram de ser permitidos os ritos de veneração dos antepassados em casa, nos cemitérios ou durante os funerais. No entanto, a Igreja Católica revogou a proibição desses ritos em 1939 e os católicos na China receberam luz verde para conduzir algumas formas concretas de veneração dos antepassados. Sei que algumas comunidades católicas chinesas na diáspora praticam alguns destes ritos. Quando os católicos se associam à veneração dos antepassados, devem evitar práticas que contradigam a fé católica. O culto dos antepassados na cultura chinesa está enraizado no Confucionismo, no Taoísmo e na religiosidade popular. Envolve oferendas, rituais e orações a familiares já falecidos, os quais se acredita que continuam a exercer influência sobre os vivos. Há ainda a questão da queima de incenso, das ofertas de comida e da reverência perante as tábuas memoriais. Do ponto de vista histórico, a Igreja considerou e considera estes rituais como incompatíveis com a fé católica.
CL – Em Macau, uma das singularidades da Igreja Católica é ter associado a devoção a Nossa Senhora da China ao Ano Novo Lunar. É, pois, uma boa forma de harmonizar fé e identidade cultural? Ou estamos perante uma forma extrema de aculturação?
P.J.L. – Parece-me que a tradição de associar fé e cultura durante o Ano Novo Lunar, em particular através da devoção a Nossa Senhora da China, pode ser entendida como uma tentativa de harmonizar fé e cultura e não tanto como uma forma radical de aculturação. O Ano Novo Lunar é uma celebração muito significativa na China e em muitas comunidades da Ásia Oriental. Não é só o pretexto ideal para reuniões familiares e para a observância de alguns aspectos culturais, mas também uma boa ocasião para expressar gratidão a Deus ou às divindades veneradas na tradição chinesa. Este aspecto reflecte-se em vários costumes, como o de rezar aos antepassados e às divindades, agradecendo-lhes as graças concedidas durante o ano transacto. O mesmo serve para solicitar protecção e prosperidade para o novo ano. As pessoas recorrem a diferentes rituais para honrar e expressar gratidão às divindades. Queimar incenso e oferecer alimentos são alguns dos mais habituais. O expressar de gratidão durante o Ano Novo Chinês coloca, portanto, em relevo a natureza multifacetada do Festival da Primavera, uma celebração que entrelaça elementos culturais, familiares e espirituais. O Ano Novo Lunar está profundamente enraizado em práticas culturais milenares. Ao harmonizar fé e cultura durante as celebrações, podemos encorajar o diálogo intercultural e inter-religioso. Nesse sentido, a harmonia entre fé e cultura encoraja os católicos chineses a olharem para a sua fé como algo que reforça a sua identidade cultural e não o contrário, como se poderia eventualmente esperar.
CL – De que forma é que a devoção a Nossa Senhora da China reflecte essa harmonia? O quão importante foi na formação de uma identidade católica chinesa?
P.J.L. – A devoção a Nossa Senhora da China é imensamente relevante para a formação de uma identidade católica chinesa, na medida em que coloca em contacto a fé católica e a cultura chinesa, e os diferentes contextos espirituais que lhe estão associados. Antes de mais, ajuda à enculturação da fé católica. A devoção a Nossa Senhora da China representa uma enculturação do Catolicismo, com a fé universal a ser expressada através de um prisma marcadamente chinês. A devoção à Virgem Maria, sob a designação de Nossa Senhora da China, confere ao Catolicismo um aspecto doméstico na China. Deste modo, o Catolicismo deixa de ser entendido como uma religião estrangeira ou Ocidental, mas como algo que se harmoniza com os valores e as tradições chinesas. Esta percepção ajuda os católicos na China a assumir uma identidade singular, que é ao mesmo tempo autenticamente católica e autenticamente chinesa. O título de Nossa Senhora da China reflecte uma dimensão de devoção mariana que é ao mesmo tempo local e nacional e que confere aos católicos chineses um sentido de pertença à Igreja universal. Quando o Papa Francisco concluiu a Missa que celebrou em Ulan Bator, a capital da Mongólia, em Setembro de 2024, instou os católicos chineses a serem bons cristãos e bons cidadãos. A devoção à Virgem Maria, em particular a Nossa Senhora da China, coloca em evidência a harmonia entre fé e cultura. Repito: encoraja os católicos chineses a olharem para a sua fé como algo que realça e consolida a sua identidade cultural, em vez de a enfraquecer.
Marco Carvalho