«Porventura, teremos que viver com este coronavírus por um ou dois anos»
Sem uma vacina eficaz ou fármacos anti-virais que possam aligeirar o impacto do SARS-CoV-2, o mais certo é que a actual pandemia seja uma realidade omnipresente durante mais dois ou três anos. Para Joseph Kam Kai-man, especialista em microbiologia clínica, o expediente da imunidade de grupo não é solução para a crise de saúde pública em que está mergulhado o planeta, e a retoma económica não se fará sem sacrifícios e sem muita auto-disciplina. O investigador do Centro Stanley Ho para Doenças Infecciosas Emergentes em entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM – De que forma é que o surto da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), em 2003, ajudou a preparar melhor Hong Kong e Macau para esta pandemia do Covid-19?
JOSEPH KAM– Por causa desse surto e do que aconteceu há dezassete anos, a população de Hong Kong já estava habituada à ideia de ter de usar máscara, de ter de lavar as mãos ou de adoptar outros procedimentos de higiene. Os residentes de Hong Kong já estavam até habituados a uma espécie de confinamento ou de quarentena, ou seja lá o que for que lhe queira chamar. A comunidade, de uma forma geral, está muito mais receptiva a este tipo de medidas e é muito mais fácil adoptá-las. Quando este novo coronavírus surgiu, a maior parte das pessoas já tinha consciência do que devia e não devia fazer. Hong Kong e a maior parte dos países ou territórios asiáticos – a China, a Coreia do Sul ou mesmo Taiwan – estavam melhor equipados, melhor preparados para responder a esta pandemia do que outros países que não passaram pela experiência da SARS no passado.
CL– De que forma é que este novo coronavírus se equipara ao que esteve na origem da SARS? O que provocou a SARS há dezessete anos parece ser relativamente mais brando…
J.K.– Sim. Neste, aquilo que denominamos de transmissibilidade, a capacidade para se disseminar no seio da comunidade, é muito mais poderosa. O grau de disseminação comunitária é, creio eu, pelo menos dez vezes – e há até quem diga que é cem vezes – mais poderosa que o do vírus que esteve na origem da SARS. Na altura, a disseminação ocorreu sobretudo na Ásia e foi muito limitada. Agora, o que vemos é que este coronavírus se espalhou por quase todas as nações do planeta. A forma como se espalha não é apenas muito mais rápida, como o grau de disseminação é também muito mais amplo.
CL– Um dos aspectos mais assustadores deste novo coronavírus é o facto de que uma boa parte das pessoas que transmitem o vírus não apresentam qualquer sintoma. Esta característica pode dificultar o controlo da epidemia?
J.K.– Sim. Este aspecto já era conhecido noutras doenças, como é o caso do sarampo. Sabemos que os pacientes infectados com sarampo muitas vezes não apresentavam qualquer sintoma quando começavam a disseminar o vírus. É algo que testemunhamos noutros vírus, mas não vimos este comportamento aquando da SARS. Há dezassete anos, apenas os pacientes que desenvolviam sintomas podiam transmitir a doença. Apesar de no passado termos identificado outros vírus com esta característica, os investigadores não esperavam encontrar este comportamento num coronavírus, tendo em conta a experiência adquirida com a SARS. No entanto, e dado que este aspecto era conhecido noutros vírus, não posso dizer que esta realidade me é estranha. Sabemos muito bem que alguns vírus comportam-se de forma diferente durante a fase de incubação da doença.
CL– Acredita que é possível “achatar a curva” e reduzir o número de infecções sem uma vacina? Ou pelo menos sem um tratamento eficaz?
J.K.– É muito difícil. Se tivermos em conta a experiência com outros vírus e outras doenças – o sarampo ou a papeira, por exemplo – só conseguimos controlar essas patologias quando as vacinas foram criadas. Sem uma vacina, o que nos resta é a imunidade natural, mas duvido que possa ser uma solução para esta pandemia. Serão necessárias muitas mais pessoas para obter o que se designa por “imunidade de grupo”. Para que tal seja possível é necessário muito tempo e muitas mais pessoas morreriam até conseguirmos atingir o resultado desejado. Esta solução não é prática. Um aspecto completamente diferente são os fármacos e os tratamentos anti-virais. Por exemplo, para o HIV, já temos fármacos anti-virais muito eficazes, que utilizamos para impedir que o HIV se dissemine. Agora não temos nada. Não temos um único fármaco eficaz. Os investigadores estão a testar compostos diferentes – cloroquina, ribavirina e outros – mas até ao momento não há um tratamento que se possa dizer que seja eficaz. É de esperar que o vírus se continue a espalhar se não forem adoptadas medidas de contingência e isolamento.
CL– Durante quanto tempo teremos que viver com este novo coronavírus? O covid-19 pode tornar-se uma doença recorrente, como a gripe?
J.K.– Esta crise epidémica faz parte do nosso quotidiano há quatro, cinco meses. Parece-me que não vai subsistir por si mesma, até porque o grau de transmissibilidade do vírus é muito elevado. É dez – ou mesmo cem vezes – mais elevado que o de outros vírus. Poderá ter um padrão semelhante ao da gripe. Vai circular de país para país até que uma boa vacina ou anti-viral seja desenvolvido. A experiência angariada com a SARS de pouco serve neste momento. Não podemos esperar que regressemos ao normal dentro de dois ou três meses. Sou um pouco mais pessimista. Porventura, teremos que viver com este coronavírus por um ou dois anos, se calhar, três… Vamos ter de mudar o modo como vivemos. Não poderemos ir a jogos de futebol ou a festivais com milhares de pessoas. Teremos que evitar eventos de massas e quando participarmos em reuniões com outras pessoas teremos que continuar a usar máscaras, a manter a distância de segurança e aí por adiante. Teremos que mudar o nosso modo de vida se é que queremos regressar gradualmente ao normal. Mas este processo vai prolongar-se por anos, não é por meses. Como lhe dizia, estou um tanto ou quanto pessimista. Talvez um ou dois anos ou talvez mais. Até lá, durante este período, teremos de modificar o modo como vivemos, a forma como olhamos para as deslocações de avião, para eventos e multidões e para as práticas de distanciamento social.
CL– A comunidade científica está a fazer um esforço notório para desenvolver uma vacina, mas é pouco provável que esteja disponível a breve prazo…
J.K.– Exacto! Se bem se lembra, também se falava de uma vacina para a SARS. A SARS atacou há dezassete anos e ainda estamos a falar de uma vacina. O mesmo com a vacina do HIV. Há trinta, 35 anos que falamos de uma vacina e ainda não há nenhuma. É bom que haja esta mobilização, mas conceber uma vacina eficaz não será fácil, parece-me. Os investigadores estão a tentar acelerar os procedimentos, a burocracia e tudo o mais, mas mesmo do ponto de vista científico ainda são muitas as barreiras que é necessário ultrapassar. Como referia, não sou muito optimista quanto à possibilidade de se obter uma vacina a breve prazo. Há quem fale de testes em humanos até ao final do ano ou no início do próximo ano, mas não estou muito optimista.
Marco Carvalho