«A fé existe, continua a ser algo que me acompanha»
É desde há três anos o único deputado português na Assembleia Legislativa. É também um dos poucos parlamentares católicos do Hemiciclo e assegura que a fé é algo que o motiva e acompanha. Antigo seminarista, presidente da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau e conselheiro das Comunidades Portuguesas, José Pereira Coutinho defende que o Governo deve fazer do apoio social um aspecto prioritário das Linhas de Acção Governativa para o próximo ano. O Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, apresenta o documento a 16 de Novembro na Assembleia Legislativa.
O CLARIM– As Linhas de Acção Governativa estão à porta. Como deputado à Assembleia Legislativa, no seu entender, que tipo de orientação prioritária deve o Chefe do Executivo dar à acção legislativa para o próximo ano?
JOSÉ PEREIRA COUTINHO– Em primeiro lugar, gostava de recordar que ao longo dos últimos vinte anos temos vindo sempre a alertar para os perigos derivados do facto de os nossos recursos financeiros serem provenientes unicamente das receitas do jogo. Estas preocupações foram elencadas ano após ano, quer na Assembleia Legislativa, quer pela via das acções da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau e das reuniões que temos tido com os governantes. Isto vem a lume porque neste momento estamos seriamente preocupados com o facto das receitas não serem suficientes para manter a médio e a longo prazo os apoios sociais – que são extremamente importantes – às famílias mais carenciadas, aos deficientes, às crianças com necessidades de cuidados especiais e, principalmente, aos idosos. Estamos preocupados com os idosos porque a população vai envelhecendo e cada vez mais apresentam necessidades, quer na área da saúde pública, quer na área dos apoios sociais para manter o mínimo possível a qualidade de vida dos residentes de Macau. Há que encontrar rapidamente saídas para que a economia de Macau se desenvolva de uma forma mais saudável ou pelo menos diferente do sistema a que fomos habituados ao longo dos últimos vinte anos. Para que isso aconteça, é necessário ter visão, é necessário ter conhecimento da realidade de Macau e uma visão mais internacional, mais aberta e mais unificadora.
CL– O Chefe do Executivo já disse por mais de uma vez que é necessário gerir melhor a forma como são gastos os dinheiros públicos. A própria Fundação Macau já anunciou cortes nos financiamentos…
J.P.C.– No nosso entender, os cortes deveriam começar com o metro. O metro que temos é aquele e ponto final. O Governo devia abrir mão do prolongamento do metro até Seac Pai Van e esquecer a construção da linha de Macau. É uma obra megalómana, dispendiosa e nós não temos recursos, caso a economia continue assim, para poder sustentar estes projectos. O metro não é único, de resto. Temos mais elefantes brancos, nomeadamente o Macau Dome, que foi construído com grande deficiências. Não sei até que ponto não valia mais reconstruir esta estrutura e destiná-la às necessidades essenciais da população de Macau, nomeadamente no que diz respeito à construção de habitação económica ou de recintos desportivos. Por outro lado, falando de despesas, é preciso acabar com despesas supérfluas. Algumas, referi-as num passado recente. Falo, nomeadamente, do desperdício de cerca de dez mil milhões de patacas na aquisição de bens e serviços de consultoria. Foram dez mil milhões gastos em papel e só oito a nove por cento desses relatórios, dessas aquisições de serviços de duvidosa necessidade foram publicitados. É preciso fazer cortes radicais nesse aspecto, antes de pensar nos salários e nas despesas essenciais de cariz social.
CL– Teme que esta crise possa comprometer alguns dos apoios sociais actualmente distribuídos pelo Governo?
J.P.C.– Nós fizemos várias vezes propostas ao Governo para que aumente o valor da comparticipação pecuniária para as catorze mil patacas. Pedimos também que os vales de saúde de seiscentas patacas pudessem ser actualizado para as mil patacas. Já enviámos cartas ao Chefe do Executivo por duas vezes para que o subsídio de oito mil patacas, do cartão de consumo electrónico, possa ser mantido no próximo ano. Estamos também a pedir que os deficientes que precisam de apoios especiais, que as crianças e que os idosos com doenças crónicas possam ter o devido acompanhamento e os devidos apoios. Acredito que o Governo, nesse aspecto, não deverá, em princípio, descurar essas necessidades.
CL– É o único deputado português do Hemiciclo, mas antes disso foi dirigente associativo, funcionário público e seminarista. Ainda mantém algum tipo de ligação à Igreja hoje em dia?
J.P.C.– Fui seminarista. Mantenho a fé. Fui educado no Seminário em regime de internato. Vivia dentro do Seminário, fazia toda a minha vida dentro do Seminário, com a excepção das aulas que tinha no Liceu Infante D. Henrique. Mantenho fortes recordações do Seminário de São José, dos padres que foram meus professores; e a fé existe – continua a ser algo que me acompanha. É algo que fica marcado para o resto de toda a vida.
CL– Herdou dessa passagem pelo Seminário alguma característica que tenha ajudado a moldar o seu carácter?
J.P.C.– Moldou-me o carácter na questão do apoio às pessoas que mais precisam. Isto foi sempre muito marcante na minha vida: dar sempre a mão àqueles que precisam. E é isso que eu tenho tentado fazer ao longo dos vinte anos da RAEM. Antes da RAEM, não me foi dada a oportunidade de ter estado envolvido de forma tão activa em associações. A única associação com que estive envolvido ao longo da vida foi a primeira e é até hoje a única: a Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau. Aproveito para agradecer muito a oportunidade que me foi dada pela doutora Rita Santos para fazer parte desta associação. E é isso que tem pautado a minha actuação: não ter medo, ser corajoso e não deixar de enfrentar a onda só pelo facto de a onda ser extremamente grande e poder morrer dentro de água. Ou seja, é importante estar sempre na linha da frente, desde que se acredite que vale a pena e que essa é a posição correcta, a de continuar na senda de ajudar os que mais precisam. E é isto que a ATFPM tem estado a fazer e que se reflecte na Assembleia Legislativa e no trabalho que desenvolvemos no Conselho das Comunidades Portuguesas.
CL– A Igreja continua a ter um papel importante em Macau? Ou não?
J.P.C.– A minha mãe tem 96 anos de idade. Ela vive comigo e todas as semanas assiste por via televisiva à missa dominical e, como eu estou com ela, também participo na Missa. A homilia é extremamente importante. É na homilia que o sacerdote passa mensagens e essas mensagens são muito importantes para a comunidade religiosa de Macau. É importante ter fé. É importante acreditar, é importante saber o que se passa e é importante ter persistência para aguentar esta situação, que afecta toda a gente no mundo. Gostaria de sublinhar que a TDM está a fazer um excelente trabalho, ao continuar a transmitir esta missa dominical pela televisão, até porque não são só os idosos que assistem à transmissão. São também os doentes, as pessoas que estão nos hospitais, as pessoas que têm dificuldades de locomoção e que estão em casa.
Marco Carvalho