«Nos próximos meses vamos-nos focar na adopção».
Tornou-se, em Macau, o rosto da luta contra o tráfico humano e uma das vozes mais activas na defesa de uma lei que pudesse proteger verdadeiramente as vítimas de violência doméstica. Aos 81 anos, a irmã Juliana Devoy diz que o território lhe deu a oportunidade de ajudar os outros de uma forma que seria impensável em qualquer outro lugar do mundo, mas sustenta que ainda há muito a fazer para transformar Macau numa cidade mais justa. A luta por um processo de adopção mais humano é a próxima batalha da directora do Centro do Bom Pastor.
O CLARIM – É, de certo modo, o rosto da luta contra o tráfico humano e do combate à violência contra a mulher em Macau. Relativamente ao tráfico humano, o panorama melhorou ou não ao longo dos últimos anos? Questões como a prostituição e o abuso de menores continuam a ser um problema no território?
IRMÃ JULIANA DEVOY – Bem, só posso falar de raparigas com menos de 18 anos. Temos um acordo com o Governo em que nos responsabilizamos a tomar conta delas. Raparigas com menos de 18 anos são consideradas pelas Nações Unidas como crianças e, como tal, precisam de ser protegidas. De facto, as menores de 18 anos que temos recebido são todas oriundas da República Popular da China. Não são de Macau. O número de raparigas menores que nos pedem ajuda por via telefónica não é substancial. A maior parte são interceptadas pela polícia – e eu suponho que há muitas que não sejam – e acabam por nos ser entregues depois de terem sido interrogadas. Nos últimos seis anos, mais coisa menos coisa, recebemos 62 raparigas menores…
CL – Sessenta e duas?
I.J.D. – Sessenta e duas, sim. No início eram mais. Agora o número de ocorrências é menor. Num ano, recebemos duas ou três raparigas, ao passo que no passado por vezes recebiamos cinco ou seis. O problema ainda persiste, na medida em que estas raparigas, que são oriundas de diferentes partes da China, são muito vulneráveis. A maior parte cresceu no seio de famílias pobres, abandonam a escola. Só tivemos um caso de uma menina que terminou o Ensino Secundário, a maior parte desistiu muito antes disso. São infelizes em casa e, como tal, são presas fáceis para os traficantes. Eles prometem-lhes o mundo quando as trazem para Macau…
CL – O que os traficantes lhes prometem, exactamente? Emprego?
I.J.D. – Dinheiro. Prometem-lhes sobretudo dinheiro. Trabalhei em Hong Kong durante muitos anos com raparigas que apresentavam problemas comportamentais e, em termos comparativos, estas raparigas são boas. Não são duronas e problemáticas como as raparigas com que lidávamos em Hong Kong. O problema é que são meninas muito vulneráveis. Quando são interrogadas pela polícia, depois de serem interceptadas, recusam-se a cooperar, a dizer quem as trouxe para Macau. A maior parte dizem que vieram pelo próprio pé, o que é impossível porque nem sequer fazem ideia de onde Macau é. Ainda assim, recusam-se a denunciar quem as trouxe. Sem provas, sem suspeitos e sem acusação, o Governo não consegue levar ninguém a tribunal e o Governo fica sem outra opção que não enviá-las de regresso a casa, onde o mais das vezes têm os traficantes à espera. Das mais de sessenta que recebemos no Centro do Bom Pastor, só tenho conhecimento de um caso de uma que casou e que tem um bebé, mas não faço ideia do que aconteceu com as restantes, porque não temos forma de as acompanhar assim que regressam ao Continente.
CL – O apoio a vítimas de tráfico humano é só um dos aspectos do trabalho desenvolvido pelas Irmãs do Bom Pastor…
I.J.D. – Bem, basicamente somos um centro de gestão de crises. Quando iniciámos o projecto procurámos uma alternativa à palavra portuguesa “Lar” porque não queriamos que se tratasse apenas de uma mera residência. Desde o início que tomamos posições públicas sobre os direitos das mulheres. Ao longo dos anos, recebemos mulheres que passaram por situações inimagináveis. Para além de residentes de Macau, que constituem 99 por cento dos casos a quem concedemos ajuda, também acolhemos mulheres estrangeiras: tivemos algumas que saíram da prisão e que ficaram connosco até lhes ter sido dada a possibilidade de regressarem ao seu país de origem. Tivemos o caso de uma mulher do Uganda, com a qual ainda mantemos o contacto, que foi presa por tráfico de droga, mas que era também uma vítima, porque foi utilizada por pessoas sem escrúpulos. Acolhemos pessoas da Rússia, da Mongólia, uma família da Jamaica até.
CL – A grande maioria dos casos diz respeito, no entanto, a mulheres locais…
I.J.D. – Sim, a mulheres locais e a casos de violência doméstica. Como sabe, conseguimos fazer com que uma nova lei fosse aprovada. Nunca me canso de dizer que se foi aprovada, foi graças aos jornalistas de língua portuguesa. Eles nunca deixaram de escrever contra uma posição que consideravam injusta: a ideia de que se a agressão acontecia dentro de casa não se tratava de um crime.
CL – Depois da aprovação da lei, temos visto um maior número de mulheres a denunciar situações de abuso, algumas das quais se prolongavam por anos a fio. O número de mulheres que procuram o Centro do Bom Pastor diminuiu depois da lei ter rebebido luz verda da Assembleia Legislativa?
I.J.D. – O número não diminui, precisamente porque há mais mulheres que perderam o medo de denunciar os episódios de violência de que foram alvo. Mas também tenho de dar crédito ao Governo porque já é possível ver em alguns autocarros publicidade a uma linha telefónica de aconselhamento para vítimas de violência doméstica. No passado isto era impensável, porque a posição do Governo era a de que as mulheres tinham o direito a não apresentar denúncia. Como sabe, foi necessário esperar um ano para que a lei fosse verdadeiramente implementada e, de certa forma, a própria polícia precisava de tempo para ser educada. Pelo menos agora, já sabem diferenciar um arrufo entre marido e mulher e algo incomensuravelmente mais grave…
CL – O que se segue para Juliana Devoy e para as Irmãs do Bom Pastor?
I.J.D. – Nunca me canso de agradecer a Deus por ter colocado Macau no meu caminho. De certo modo, Macau deu-me a oportunidade de tocar e mudar a vida destas pessoas de uma forma que teria sido impossível em qualquer lugar do mundo. E os desafios permanecem. Nunca ficámos sem nada para fazer em Macau. Nos próximos meses vamos-nos focar na adopção, ainda que numa perspectiva mais ampla, a do direito de cada criança a crescer no seio de uma família.
Marco Carvalho