«Há muita gente que reage estupidamente quando se fala em Descobrimentos».
A escritora de romances históricos Deana Barroqueiro tem novo livro na calha. O Clarim foi ouvi-la falar dessa sua nova obra e do desinvestimento nas áreas da Educação e da Cultura por parte do Estado Português, que, no decorrer de 2015, não assinalou devidamente duas importantes efemérides: os 600 anos da tomada de Ceuta e os Quinhentos anos da morte de Afonso de Albuquerque. E é por aí mesmo que iniciamos a nossa conversa.
O CLARIM – O que acha do Governo de um país que ignora efemérides destas?
DEANA BARROQUEIRO – Demonstra ignorância. Refiro-me ao Governo anterior, pois o actual ainda mal teve tempo de respirar. Foi dos mais medíocres em termos culturais que a minha longa vida presenciou. Substituir um Ministério da Cultura por uma Secretaria de Estado da Cultura é querer um povo inculto, ignorante, incapaz de se inteirar da sua mediocridade e do Governo que os governa. Um Governo que só pensa no próprio estatuto e não no interesse comum.
CL – Os povos nem sempre convivem bem com a sua História. Concorda com esta afirmação?
D.B. – Em absoluto. Portugal é um bom exemplo disso, embora essa atitude seja mais frequente nos países que foram colonizados. Têm esse péssimo hábito de imiscuir a história actual com a história passada e não conseguem digerir esse facto, esquecendo algo de fundamental, e que é: conhecer o passado auxilia a entender o presente, permitindo uma melhor projecção no futuro. Evitam-se asneiras anteriores, por exemplo. Uma nação é composta de passado, presente e futuro. Estou a falar de continuidade, e se cortamos uma parte ficamos incompletos. No caso português, urge fazer as pazes com determinados aspectos do nosso passado. E se houve violência, a verdade é que também houve imensa coisa positiva. É isso que é importante realçar.
CL – Será que a violência de que fala tinha razão de ser? Justificava-se?
D.B. – A violência no tempo de Afonso de Albuquerque, já que serve de exemplo, era uma “violência necessária”, ou seja era a fruta da época. Todos os povos a praticavam. Impunha-se o poder através do medo. Como é que acha que os muçulmanos, no seu processo de islamização do continente asiático, tratavam os povos com quem se deparavam? Para lá desse lado tenebroso, não esqueçamos, houve actos de grande generosidade e até actos verdadeiramente revolucionários para a época. Por exemplo, nas regiões sob a jurisdição de Albuquerque os indianos estavam impedidos de praticar o sati – o sacrifício ritual das viúvas nas piras dos maridos defuntos – e aos infractores eram aplicadas penas duríssimas. Além disso, não esqueçamos que Albuquerque foi o grande promotor dos casamentos mistos. Não só entre portugueses desclassificados, ou seja, os degredados e bandidos, mas também entre os soldados comuns. O almirante oferecia terras e postos administrativos a quem casasse com as mulheres indígenas cristianizadas. Mas o mais admirável era a sua incorruptibilidade. Era um indivíduo de uma honestidade e de uma lealdade a toda a prova. Por isso foi posteriormente amarfanhado, aviltado, e, na hora da morte, viu-se substituído por aqueles que tinha mandado acorrentados, como ladrões, para o Reino e que depois D. Manuel – certamente influenciado por maus conselheiros, amigos desses corruptos – libertou, reconduzindo-os nos cargos anteriores ou premiando-os com outros postos de chefia. Mas disso não falam os detractores dos feitos dos portugueses; por desconhecimento, ou porque não lhe interessa, pois a «lenda negra» vende sempre mais. Se fossemos a comparar a violência daquela época com a da agora, então é que não há justificação alguma. Além disso, se compararmos o que os portugueses de mal fizeram pelo mundo, por exemplo, com o que de mal fizeram espanhóis, holandeses ou ingleses, parecemos uns anjos. Essa dor, essa animosidade, essa má vontade, está um bocado fora do contexto, não faz sentido. Assumir os erros e as virtudes, faz parte do reencontro de um povo com a sua história e a história dos demais.
CL – Qual foi para si o factor mais admirável nessa descoberta iniciada há 600 anos?
D.B. – Foram muitos; é difícil escolher. O contorno dos continentes foi em grande parte descoberto e desenhado pelos portugueses, que ali deixaram uma vasta toponímia. Grande parte das ilhas e lugares onde os portugueses aportaram foram na realidade descobertas, no sentido em que não havia lá ninguém. Era um descobrir para a Europa, como é óbvio. Mas há ainda muita gente que reage estupidamente quando se fala em Descobrimentos, maldosamente deturpando o sentido. Já no século XVI a presença das pessoas nesses locais “descobertos” não era escamoteada, como as crónicas coevas o confirmam. Os cronistas fazem essa própria crítica.
CL – Com é que surgiu essa sua paixão pelos romances históricos que valorizam os feitos dos portugueses de antanho?
D.B. – Respondo com uma pergunta. Será que é possível conhecer um pouco de História de Portugal e da Literatura Portuguesa sem ficar completamente apaixonado e maravilhado? Acho que não. Temos uma História e uma Literatura, em todos os períodos, verdadeiramente rica e fabulosa. Fui durante muitos anos professora de Literatura Portuguesa no Ensino Secundário e tínhamos um programa riquíssimo, que depressa viria a ser destruído, com a perda de todo o conteúdo e a triunfante entrada do facilitismo repugnante que ainda impera. Ou seja, enquanto era um programa a sério eu era obrigada a estudar História para poder leccionar literatura de viagens. A partir da Idade Média verificamos que temos autênticos génios em todos os géneros literários e em todos os tipos de literatura, além dos factos históricos em si. Comecei a fazer escrita criativa quando ainda não se falava de escrita criativa. Ensinei os meus alunos a escrever contos, apenas com o material dos programas obedecendo à veracidade dos factos, os que os obrigava a explorar todas as técnicas narrativas. Quando se optou pelo no facilitismo no Ensino, vim-me embora, e resolvi fazer aquilo que mais amava na vida, a escrita, a minha escrita. Optei pelo romance histórico, precisamente porque era considerado um género menor, quando é, na realidade, o género literário mais difícil de concretizar. Quando este é levado a sério.
CL – Como assim?
D.B. – Para escrever um romance histórico intelectualmente honesto é preciso estudar muitíssimo. Não se pode enganar o leitor. Romances históricos feitos em seis meses ou num ano, peço imensa desculpa mas considero-os uma fraude.
CL – Mas há muita gente a fazer isso…
D.B. – Sim, mas é outra coisa. Romance histórico não é, de certeza. Como dizia o Almeida Garret, vão buscar «uns figurões», uns nomes à História, pintam-nos, acachapam-nos – «grudam-nos», como ele diz, e bem, «no papel da moda» – e, pronto, está a coisa feita. Infelizmente isso acontece com a cumplicidade das editoras e eu lamento imenso que tal aconteça, porque depois quem faz romances a sério, com anos e anos de trabalho – nenhum livro dos meus tem menos de três ou quatro anos de trabalho – é metido no mesmo saco dos “escritores de romances históricos a metro”. Considero isso muito injusto.
CL – Quer falar-nos do seu próximo romance?
D.B. – A trama desse romance tem lugar no século XVII, no período da Restauração e pós-Restauração. Um período difícil que coincide com a decadência do Império Português. Nele aplico, tal como nos romances anteriores, a minha componente literária, neste caso o barroco, próprio do século XVII. É um romance a quatro vozes, todas elas distintas, com um linguajar muito próprio, representativo da mentalidade da época. São eles: Brás Garcia de Mascarenhas, autor da grande epopeia do século XVII, “O Viriato Trágico”, e um dos guerreiros da Restauração. Temos depois a poetisa Soror Violante do Céu, que dá a perspectiva das mulheres e dos freiráticos, que era uma das componentes do século XVII que não se pode deixar de fora. Temos ainda Francisco Manuel de Melo, outro ponto de vista, completamente guerreiro, embora além militar fosse também político e escritor. E termino com a voz do padre António Vieira, que dará a parte diplomática.
CL – Já tem título?
D.B. – Não. Essa questão fica habitualmente a cargo do editor. Digo que estou na parte final, mas a minha parte final é sempre muito comprida. Estou com quatrocentas e cinquenta páginas, mas isso ainda é dois terços do total. É impossível meter a nossa riquíssima História em poucas páginas.
Joaquim Magalhães de Castro