Liberdade Religiosa e Direitos Humanos na Europa do século XXI

Não problema mas parte da solução.

O conceito dos Direitos Humanos, no contexto europeu, surge a partir do século XVIII, como afirmação da dignidade de cada indivíduo, independentemente das próprias ideias, convicções ou pertença religiosa. Desde o início, tal afirmação dos direitos do homem baseou-se em princípios considerados evidentes e comuns a todos os seres humanos; princípios que até hoje mantiveram todo o seu significado, constituindo o fundamento da cultura dos Direitos Humanos.

A partir do Concílio Vaticano II, também a Igreja católica, depois de uma reflexão longa e não sem dificuldades, adoptou um quadro normativo renovado para as relações que poderíamos qualificar como “externas”: com as outras religiões, com os Estados e, mais profundamente, com a sociedade e a cultura do nosso tempo. Não se tratou de uma simples mudança de políticas mas de uma autêntica renovação, que se tornou possível, como sempre acontece com os processos de reforma da Igreja, através de uma profunda reflexão teológica sobre a própria identidade. Tudo Isto a levou a compreender de modo novo a própria relação com o mundo, numa tensão fecunda, que ainda hoje sentimos, entre a valorização do que a civilização moderna apresenta de positivo, e um espírito crítico em relação ao que parece incoerente com o Evangelho e com a recta razão.

Entre os Direitos Humanos, uma posição de relevo cabe à liberdade religiosa, que Bento XVI quis definir como «o primeiro dos direitos, porque, historicamente, foi afirmado em primeiro lugar, e por outro, tem como objecto a dimensão constitutiva do homem, isto é, a sua relação com o Criador». Além disso, a liberdade religiosa, entendida como direito a viver na verdade da própria fé e no respeito pela dignidade transcendente da pessoa humana, é a fonte e a síntese dos direitos. Disto, continua Bento XVI, se «se negar ou limitar de maneira arbitrária tal liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa humana; obscurecer o papel público da religião significa gerar uma sociedade injusta, porque não será proporcionada a verdadeira natureza da pessoa humana; isto significa tornar impossível a afirmação de uma paz autêntica e duradoura de toda a família humana».

Mais recentemente, o Papa Francisco recordou que a liberdade religiosa «é um direito fundamental que plasma o modo como interagimos social e pessoalmente com os nossos vizinhos, cujas visões religiosas são diferentes da nossa».

Assim, compreende-se a grande consideração que a Santa Sé tem pela liberdade religiosa e os esforços que ela faz a fim de que os Estados e as organizações internacionais a possam considerar como parâmetro essencial de avaliação do grau real de liberdade numa sociedade e critério para avaliar o estado de saúde de uma democracia. Portanto, qualquer restrição ameaça a constituição democrática de uma sociedade, enquanto a sua promoção, na sua dimensão individual e comunitária, resulta ser um instrumento válido inclusive para evitar o desvio relativista e para prevenir e contrastar o fundamentalismo religioso, inclusive os fenómenos do extremismo violento e da radicalização.

Nos últimos tempos, em escala mundial, sem excepção para o continente europeu, somos testemunhas de como o respeito pela liberdade religiosa está comprometido por uma série de causas e assistimos a uma preocupante piora das condições de tal liberdade fundamental, que em diversos casos alcançou o grau de uma perseguição aberta, na qual sempre com mais frequência os cristãos são as primeiras vítimas, mesmo não sendo as únicas.

Factores determinantes destas situações alarmantes certamente podem ser indicadas na difusão dos fundamentalismos e na permanência de Estados autoritários e não democráticos. A isto acrescenta-se a constatação de que em muitos países de antiga tradição democrática a dimensão religiosa tende a ser vista com uma certa suspeita quer por causa das problemáticas inerentes ao contexto multicultural, quer pela afirmação inexorável de uma visão secularista, segundo a qual as religiões representariam visões tradicionais do mundo e da sociedade em competição directa com a plena afirmação dos direitos do homem e, de qualquer maneira, trariam consigo o resíduo de um passado que deve ser superado. Uma semelhante visão levada ao extremo conduz inevitavelmente a marginalizar as várias identidades religiosas presentes na sociedade até a sua exclusão do âmbito público.

Neste contexto, parece-me que seja totalmente pertinente recordar que é um mérito histórico do Cristianismo ter criado, na separação entre o que é de César e o que é de Deus, a possibilidade da existência de um Estado laico, entendido não como um Estado totalmente. isolado da religião, ou ainda pior como um Estado agnóstico, mas como um Estado que, ciente do valor da referência religiosa para muitos cidadãos e da importância do papel das comunidades religiosas na sociedade, permite que cada um viva segundo a própria consciência a dimensão religiosa, no seu duplo aspecto individual e comunitário, embora tendo igual respeito por quantos não se reconhecem em referência transcendente alguma.

Noutras palavras, num contexto social de acentuada secularidade, a manifestação pública da própria fé é vista mais facilmente como problemática: pode-se sentir a tentação de restringir os espaços de liberdade religioso nos lugares de trabalho, de educação e de assistência. Com uma frequência crescente, a vontade legítima de agir na profissão segundo os princípios derivantes da própria religião corre o risco de ser considerada uma prática discriminatória. Na realidade, nos últimos tempos na Europa nota-se um crescimento preocupante de formas de intolerância e episódios de discriminação, às vezes até latentes, em relação aos cristãos. A título informativo, entre Janeiro e Outubro de 2015 o Observatório para a intolerância e a discriminação contra os cristãos na Europa recebeu 1.520 denúncias de casos de intolerância e discriminação contra os cristãos no velho continente. Trata-se de um fenómeno que está a chamar a atenção também em âmbito internacional.

A tal propósito, parece-me útil citar que, em Janeiro do ano passado – há pouco mais de um ano – a Assembleia Parlamentar do Conselho Europeu aprovou a resolução “Combater a intolerância e a discriminação na Europa, em particular contra os cristãos”, na qual, entre outras coisas, os Estados membros são exortados a tomar medidas adequadas para garantir que a cada pessoa na Europa seja concedida a protecção efectiva da liberdade de religião e para promover uma cultura do viver juntos baseada na aceitação do pluralismo religioso e do contributo das religiões para uma sociedade democrática e pluralista. No mesmo documento, recomenda-se também que se defenda a liberdade de consciência no lugar de trabalho, garantindo também que seja mantido o acesso aos serviços públicos gratuitos, que se respeite o direito dos pais a oferecer aos seus filhos uma educação em conformidade com as próprias convicções religiosas e que se vigie a fim de que as leis nacionais não limitem abusivamente os discursos fundados em considerações religiosas.

Também a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa desde a sua fundação, exactamente há quarenta anos, considerou a tutela da liberdade religiosa um elemento fundamental da sua política a favor da paz e da estabilidade do nosso continente. Durante as negociações da Conferência sobre a segurança e a cooperação na Europa, que em 1975 levaram a adopção da Acta final de Helsínquia, foi precisamente a Santa Sé que promoveu o reconhecimento explícito da liberdade religiosa por parte dos Estados participantes, indicando neste direito fundamental uma garantia da liberdade e da salvaguarda da democracia.

Todavia, quarenta anos depois, no que se refere ao diálogo entre confissões religiosas e instituições públicas, notam-se sinais inquietadores e contrastantes também na Europa. As autoridades civis nem sempre reconhecem as comunidades religiosas o papel de interlocutores, ao contrário do que acontece por exemplo com as organizações da sociedade civil. Além disso, no contexto de uma sociedade secularizada, parece que para as autoridades públicas não é sempre fácil colher a singularidade do contributo que as comunidades religiosas podem oferecer para a manutenção da coesão entre os vários componentes sociais, favorecendo um diálogo aberto e respeitador. Por outro lado, é muito evidente que a dimensão religiosa continua a ser ponto de referência existencial para milhões de pessoas no continente europeu, a determinar as suas escolhas e, numa certa medida, a própria identidade.

Por conseguinte, parece intrinsecamente contraditório pedir a liberdade para todos e em nome desta liberdade negá-la a alguns grupos. Contrastar qualquer forma de discriminação baseada na orientação religiosa tem que ser um dever essencial para as instituições, mas também, em perspectiva positiva, promover e proteger ao mesmo tempo a liberdade religiosa e com todos os instrumentos empregados para a defesa de qualquer outro direito fundamental. Neste sentido, com base no princípio da indivisibilidade e da interdependência dos direitos fundamentais, o Magistério da Igreja e as intervenções dos Romanos Pontífices visam sempre evidenciar que o direito à liberdade religiosa deve ser objecto de uma atenção específica e integrado em todas as acções e reflexões mais significativas em matéria de Direitos Humanos.

No complexo contexto contemporâneo, ressoam particularmente preciosas as palavras que o Papa Francisco dirigiu, em 2014, à Assembleia parlamentar do Conselho da Europa: «Religião e sociedade são chamadas a iluminar-se reciprocamente, apoiando-se uma à outra e, se necessário, purificando-se mutuamente dos extremismos ideológicos em que podem cair. A sociedade europeia inteira só pode beneficiar de uma conexão revitalizada entre os dois âmbitos, tanto para enfrentar o fundamentalismo religioso que é inimigo sobretudo de Deus, como para obstar a uma razão “reduzida” que não honra o homem».

Por isso, a Santa Sé apoia desde sempre a oportunidade de um diálogo directo e institucionalizado entre autoridades civis e confissões religiosas. Isto é válido a nível dos Estados mas também para os poderes locais e para as organizações internacionais. Tal diálogo é particularmente importante no contexto de uma sociedade multipolar. De facto, se as religiões não forem parte da solução, tornar-se-ão facilmente parte do problema.

D. PAUL RICHARD GALLAGHER 

Arcebispo Secretário para as Relações com os Estados

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