ARQUITECTO NUNO SOARES

ARQUITECTO NUNO SOARES, EM ENTREVISTA A’O CLARIM, DEPOIS DE MAIS UM PRÉMIO EM MADRID

«A Sé Catedral não possuía uma iluminação com qualidade»

No período de menos de um ano, o ateliê de arquitectura “Urban Practice” conquistou dois prémios internacionais com projectos em que teve a diocese de Macau como cliente. Depois ter conquistado, em 2023, um galardão pela requalificação do espaço que acolhe o Arquivo Histórico Diocesano, localizado no Paço Episcopal, agora foi o projecto de iluminação da igreja da Sé Catedral a ser distinguido nos Prémios de Arquitectura de Madrid. Nuno Soares, arquitecto e director do Departamento de Arquitectura e de Design da Universidade de São José, explica a’O CLARIM os desafios que o projecto, peculiar, colocou à equipa com que trabalha.

O CLARIM – Este parece-nos ser um projecto algo peculiar. Primeiro, porque não é exactamente um projecto de arquitectura. Segundo, porque diz respeito a uma intervenção num espaço sagrado, com determinadas características. Quais foram os maiores desafios com que o ateliê teve de lidar, tendo em conta a natureza deste projecto?

NUNO SOARES – Todos os projectos têm um carácter muito próprio e são conduzidos sob condições muito próprias. Este é um projecto muito invulgar. Trata-se de um projecto que foi conduzido num espaço sagrado, numa igreja que é Património da Humanidade. Quando começámos a trabalhar neste projecto, começamos com uma investigação de fundo. Quem é que são, neste caso, os intervenientes-chave na igreja? A igreja é um edifício que tem uma função diária, onde os crentes vão todos os dias e tem uma função litúrgica. É muito importante que a função litúrgica seja bem desempenhada. Foi para isso que, inicialmente, a catedral foi desenhada e, antes da nossa intervenção, a parte litúrgica não funcionava bem, porque havia um problema de iluminação. Não havia iluminação em quantidade suficiente, a Sé Catedral não possuía uma iluminação com qualidade. Era difícil ler os textos e acompanhar os textos durante a Missa. Havia uma lacuna funcional que era necessário resolver. E para entender esta função tivemos que conversar com o Bispo; conversar com os sacerdotes e ir à catedral em diferentes cenários. Há missas diurnas, missas nocturnas, e eventos especiais, como, por exemplo, casamentos. Há vários tipos de eventos especiais e tivemos que criar diferentes cenários, que são cenários de utilização quotidiana a que a catedral está consignada. Foi tendo por base a leitura desses cenários que começámos, depois, a pensar no projecto de iluminação. Mas, ao mesmo tempo que é um edifício religioso e que tem uma função quotidiana, faz também parte do Património da Humanidade. Não pertence por si só à Igreja Católica. Pertence, de um modo geral, à comunidade de Macau.

CL – Sendo que há regras que é necessário cumprir quando se intervém neste tipo de imóveis…

N.S. – Exacto! Temos de cumprir regras de protecção do Património. Também foi muito importante percebermos a evolução histórica do edifício e fizemos o levantamento detalhado de toda a informação que existia sobre a catedral. Essa informação, muito interessante e muito vasta, também nos ajudou a perceber e a explicar como é que se chegou àquela forma actual. A catedral não começou assim. Foi crescendo ao longo do tempo e a forma que tem ganhou-a ao longo de várias fases. Tivemos que perceber essas diferentes fases e também cumprir com os requisitos de protecção do Património, que são – no caso de Macau – implementados pelo Instituto Cultural.

CL – Um projecto complexo que foi pensado e repensado ao longo dos anos…

N.S. – É um projecto com muitas revisões. Houve pelo menos seis revisões, tendo sido construído ao longo do tempo. Houve uma investigação muito grande antes de fazermos qualquer desenho. Foi muito desafiante. Aprendemos muito com ele, porque tivemos que aprender sobre a história do edifício; compreender as necessidades do utilizador; aprender todos os requisitos de protecção do Património e, por fim, conceber um projecto de iluminação. Não é um projecto de arquitectura. É um projecto em que tivemos que revelar a arquitectura, sem mostrar elementos contemporâneos. Como este é um edifício histórico, o nosso desafio foi termos níveis de iluminação contemporâneos que permitam uma leitura confortável, que permitam uma percepção do espaço confortável, mas sem termos elementos de design contemporâneos ou elementos de design que sejam pretensamente historicistas. Foi um desafio imposto por nós próprios, para cumprir com todos os desafios que tínhamos, para fazer esta iluminação invisível. Queríamos ter luz, mas não queríamos estar a revelar a fonte dessa luminosidade.

CL – É responsável pelo Departamento de Arquitectura e Design da Universidade de São José, um projecto que muitos pensavam que fosse impossível em Macau. Em que etapa ou fase está o Departamento? E de que forma é que pode ajudar a gerir mais valias, num território com as características de Macau?

N.S. – Macau tem uma história muito rica e muito invulgar. É um espaço de coexistência de culturas com mais de quatro séculos e uma arquitectura histórica muito rica e muito híbrida. Mas a arquitectura contemporânea, não obstante ter momentos de excelência, foi sempre uma arquitectura desligada de Macau. Os arquitectos que praticaram em Macau, que fizeram arquitectura em Macau, vieram de Portugal, vieram de outros países, estudaram noutros locais. Quando chegaram a Macau, fizeram obra em Macau, relacionaram-se com o contexto local em Macau, mas não conheciam o mais das vezes o território em profundidade. É muito importante para a arquitectura contemporânea que tenha um significado e que se relacione com o território e, como tal, é importante que exista uma escola de arquitectura em Macau. É importante podermos conhecer em profundidade o território e podermos desenvolver uma prática arquitectónica que tenha em conta as idiossincracias locais. No Departamento de Arquitectura e Design da USJ estamos a formar arquitectos, que são arquitectos em Macau, que podem também exercer noutros locais, mas que têm uma particular atenção e que aprendem arquitectura diariamente a ler a cidade onde vivem. No primeiro ano, os nossos alunos estudam tipologias tradicionais de Macau, como as casas de palafitas, como as casas-pátio, coisas que os arquitectos que exercem em Macau nunca tiveram tempo, nem oportunidade de fazer. Depois, estudam também todos estes edifícios mais específicos de Macau, com funções diferentes. A habitação em Macau é muito densa e eles também estudam a habitação em densidade, que é uma habitação que não estamos habituados a ver em Portugal. Para termos um Curso de Arquitectura, que seja um Curso sério, localmente e internacionalmente, é importante conhecer as idiossincracias locais, mas também darmos um contributo para o discurso internacional da arquitectura. E é isso que temos feito.

Marco Carvalho

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