«Silveira Machado é um bom exemplo do self made man»
António Aresta foi incumbido pelo Instituto Internacional de Macau de redigir um novo volume da colecção “Missionários para o Século XXI”. O investigador português vai abordar a memória e o legado de um dos fundadores d’O CLARIM, o padre Júlio Augusto Massa. A revelação foi feita na passada sexta-feira por Jorge Rangel, presidente do IIM, durante a sessão evocativa do centésimo aniversário do nascimento de José Silveira Machado. O antigo docente da Escola Comercial Pedro Nolasco é recordado por António Aresta como uma figura de grande «aprumo moral».
O CLARIM– O professor José Silveira Machado foi uma personalidade incontornável da história de Macau na segunda metade do século XX. Viveu no território durante mais de setenta anos, faleceu depois de o território ter regressado à soberania chinesa. É, de facto, uma figura invulgar?
ANTÓNIO ARESTA– Sim. Mas mais do que uma figura invulgar, é uma figura de referência. Era senhor de uma dimensão cultural e ética à qual as pessoas parece que não estão habituadas. Falo da forma como ele pensava, mas também – e sobretudo – sobre aquilo que ele escrevia. O seu exemplo de aprumo moral acho que serviu de referência a muita gente em Macau.
CL– José Silveira Machado acaba por ser um produto…
A.A.– É um produto de Macau. Um bom exemplo do “self made man”.
CL– É um produto de Macau, mas também de circunstâncias históricas bem definidas. Silveira Machado acaba por ter a mesma sorte que tiveram Benjamim Videira Pires ou Manuel Teixeira. Foram arrancados de uma situação de pobreza, digamos assim, e viajaram para Macau com o propósito de servir a Igreja. José Silveira Machado acaba por não seguir a via do sacerdócio, mas nem por isso deixou de servir Macau…
A.A.– Sim. A Igreja seria um modo de os formar, mas a grande maioria das crianças e dos jovens que vieram para Macau se calhar não se formaram. Se calhar fizeram o que Silveira Machado fez e saíram, por falta de vocação genuína. O facto de José Silveira Machado não ter seguido a via do sacerdócio não invalidou que tivesse sido uma pessoa importante. Eu penso que a grande mágoa do Silveira Machado foi não ter tido tempo para escrever a obra – ou poética ou romanesca – que teria na cabeça, como fez, por exemplo, Henrique de Senna Fernandes. Penso que a mágoa dele foi essa.
CL– Ainda assim, e do ponto de vista daquilo que é a abordagem e a apreciação da cidade no pós-guerra, a obra de José Silveira Machado, mesmo não estando dotada dessa componente literária, acaba por ser uma obra importante. É uma referência do que foi Macau na segunda metade do século XX?
A.A.– Sim. Eu fiz um levantamento mais ou menos visível daquilo que foi a obra dele, graças também a algumas indicações que ele me fez chegar em vida. Estou a referir-me não apenas aos livros que publicou, mas também a textos não assinados n’O CLARIM. Consegui identificar algumas dezenas. Ele fazia reportagens em Hong Kong, sobre a chegada de Governadores, sobre a ida de Governadores daqui para lá, e esses textos são extraordinários. A maneira como escrevia era uma maravilha.
CL– Do ponto de vista da cidadania e da actividade cívica, José Silveira Machado foi distinguido por várias ocasiões pelo contributo que deu a Macau em domínios como o ensino e o desporto. Foi uma personalidade que se soube reinventar ao longo dos anos?
A.A.– Sim. Ele preocupava-se com a limpeza das ruas, com a higiene, com a salubridade, com a segurança, numa altura em que ninguém falava nisso. Não discutia apenas questões de índole metafísica ou elevadas. Não. Ele abordava de tudo um pouco e não descurava as questões comezinhas, do dia-a-dia.
CL– Que outras figuras com este grande estado de espírito podemos encontrar em Macau nesta altura? O professor António Aresta tem vindo a escrever sobre quem mais contribui para Macau…
A.A.– No fundo, trata-se de resgatar estas figuras de um certo esquecimento. Desse tempo, posso apontar-lhe o Luís Gonzaga Gomes. Foi outra figura gigante. Temos aí a rua com o nome dele, temos uma escola com o nome dele e a obra tem sido reeditada, é verdade. Para além do Gonzaga Gomes, temos também o Adé de Sousa Ferreira. Foi o Silveira Machado que organizou a obra completa dele, pontifica como um dos organizadores. Um dos aspectos mais admiráveis de José Silveira Machado era exactamente esse: sentia Macau como se da terra dele se tratasse. Os Açores tinham ficado para trás. Esta era a terra dele. Por isso é que entre os macaenses se dizia que Silveira Machado era tão macaense como eles.
CL– O contributo dado por figuras como José Silveira Machado… Se não houver um esforço, como este que foi coordenado pelo Instituto Internacional de Macau, no sentido de salvaguardar a memória, de recuperar a obra – no caso, de Silveira Machado – corre-se o risco da presença destas figuras desaparecerem do seio da sociedade do território no contexto da RAEM?
A.A.– Se nós não tratarmos dos nossos, dificilmente alguém vai salvaguardar a memória dos nossos. Porquê? Coloca-se logo, e em primeiro lugar, a barreira da língua. Eles não dominam o Português para escreverem sobre nós. Portanto, se não formos nós a tratar da memória da nossa gente, sem bairrismo, mas com um sentido de justiça e de dignidade, ninguém o fará.
CL– Apesar de tudo, tanto o José Silveira Machado, como o José dos Santos Ferreira, como o Luís Gonzaga Gomes ainda fazem parte do imaginário do Macau português que vai sobrevivendo. Há outras figuras que correm, no entanto, o risco de serem varridas da história. Referiu, durante a sua intervenção, duas delas, o padre Fernando Maciel e o padre Júlio Augusto Massa…
A.A.– Fernando Maciel, que foi um dos fundadores d’O CLARIM, é um dos maiores jornalistas que Macau teve. E era padre. Se tiver hipótese de dar uma vista de olhos n’O CLARIMe puder ler aquilo que ele assinava, vai perceber que era uma maravilha. É uma pena este acervo não estar a ser reunido e organizado. O padre Júlio Massa era um filósofo. Escreveu n’O CLARIMtextos sobre o comunismo, contra o comunismo, contra o marxismo que são estupendos. O CLARIMconduziu uma persistente campanha contra o comunismo a partir de 1949, que foi quando a República Popular da China se organizou. Aqui, em Português, quase ninguém lia, mas a propaganda anticomunista tinha n’O CLARIMuma das suas principais vozes. Eram figuras incríveis.
CL– São figuras que poderão aparecer no terceiro volume de “Figuras de Jade”?
A.A.– Sim, sim. O Silveira Machado… já escrevi sobre ele, mas o padre Maciel e o padre Júlio Massa, provavelmente sim. Trata-se apenas de uma questão de tempo.
CL– Que outras figurais incluiria nesse terceiro volume?
A.A.– Já tenho meia dúzia delas publicadas, alguns dos quais sacerdotes. Outras ainda estão em pensamento. Não lhe sei dizer ao certo. São aspectos que vão aparecendo. Vão aparecendo.
Marco Carvalho