O companheiro na viagem da Vida
Todos procuramos orientação em algum ponto da nossa vida. Procuramos um rumo, procuramos saber como orientar a nossa vida. Para os cristãos, a busca desse sentido passa sempre pela sua fé. Nesse sentido, cada cristão é chamado a procurar orientar a sua vida no caminho da fé. O acompanhamento espiritual surge assim como resposta para esta procura de sentido. Na verdade, tem mais perguntas que respostas, mas é um caminho que tem conhecido grande sucesso.
No Evangelho de João conta-se a história de Nicodemos, o fariseu que se deslocou pela calada da noite ao encontro de Jesus. Provavelmente devido à sua condição de fariseu, não queria ser visto no convívio com aquela figura tão estranha que colocava em questão os ensinamentos que os judeus tomavam como certos. Assim, esperou pela noite e foi questionar Jesus e pedir-lhe conselhos. Jesus falou-lhe sobre a necessidade de nascer de novo e de agir «conforme a verdade, […] para que as suas acções sejam vistas, porque são feitas como Deus quer» (Jo 3, 21).
O hábito de procurar conselho e orientação espiritual é bem antigo. Apesar das catequeses em grupo, dos movimentos em que se envolvem, da Eucaristia semanal, muitos cristãos sentiram, ao longo da história, a necessidade de procurar uma orientação para a sua vida, uma forma de viverem melhor a sua fé em todas as áreas da sua existência. O que antes se designava por direcção espiritual hoje é chamado de acompanhamento. «Hoje preferimos a expressão acompanhamento espiritual, que vem da palavra companheiro, que em Latim significa partilhar o pão. E uma conotação muito mais simpática, humana, dos tempos de hoje, que é o ajudar a pessoa na partilha de vida, conversa e oração, a descobrir por onde é que a vida e Deus a está a levar, e para onde é que a pessoa está chamada a ir por Deus», explica-nos a irmã Paula Jordão, religiosa da Comunidade Verbum Dei, que há cerca de 15 anos faz acompanhamento espiritual.
Ao contrário do que se possa pensar de início, a confissão não é acompanhamento espiritual. «Confissão não tem nada a ver com isto. O que acontece é que, durante o acompanhamento, a pessoa sente a necessidade e pede a confissão, pois é um sacramento que é dado em vista de um recomeço. Mas o acompanhamento é algo de muito diferente», explica o padre Nuno Tovar de Lemos, jesuíta, que faz acompanhamento há quase 20 anos e descreve esta missão como a de um «acompanhante». «É um companheiro de viagem, com quem a pessoa partilha as coisas que são importantes para si», diz. O que é então este acompanhamento? «São conversas com um acompanhante, marcadas de forma esporádica ou regular, que têm como objectivo a relação da pessoa com Deus ou o seu crescimento como cristão. Por vezes com algumas pessoas os temas são mais específicos, mas frequentemente o tema é a própria vida e os desafios, que não são coisas desligadas de Deus», explica o sacerdote.
Outro conceito errado que muitas pessoas associam ao acompanhamento espiritual é o de ser dirigido a pessoas que andam à procura da sua fé, ou procuram a conversão. «Procuram-me todo o tipo de pessoas, desde jovens a idosos, pessoas com uma grande história de fé e outras que estão agora a descobrir o que é ser cristão», afirma o padre Nuno, para quem o acompanhamento é para todo o cristão. «A orientação espiritual é para quem procura mais. A nossa atitude de cristão é sempre de procura de mais, portanto mesmo que eu tenha fé há 50 anos, faz sentido fazê-la», defende. A irmã Paula Jordão concorda e defende mesmo que é «essencial para todos os cristãos» terem acompanhamento espiritual. «Se partirmos do princípio que fomos criados por Deus e queremos descobrir o sentido da vida que Deus nos deu, precisamos de entrar nesses caminhos, ser especialistas, e sozinhos é muito difícil. Precisamos da comunidade, precisamos de pessoas que sirvam de referência para nos ajudarem a descobrir o caminho que Deus quer para nós. É imprescindível isto», garante a religiosa.
Não há assuntos obrigatórios para quem quer ser orientado. Aliás, a diversidade de temas é tão vasta que muitas vezes tudo começa apenas por ouvir a própria voz. «A pessoa falar em voz alta sobre os desafios da sua vida concreta é muito útil, mesmo que o orientador esteja sempre calado. Depois é o confronto com outra pessoa, que pode levantar questões e dar pistas de reflexão. Nós estamos sempre muito metidos na nossa própria história, e há coisas que nunca pensámos que poderiam ser de uma maneira diferente, e a conversa com outra pessoa pode ajudar-nos muito a pôr em questão certas coisas», explica o padre Nuno, que em quase 20 anos de experiência acumulada já viu muitas pessoas passarem pelo seu gabinete. Mudam as circunstâncias, mas as dúvidas profundas pouco têm diferido. «Há muitas circunstâncias novas, dentro do universo de estudantes, principalmente. Há 20 anos havia muito menos preocupação em relação ao futuro profissional, que estava mais garantido, as vidas eram um bocadinho mais estáveis, havia menos famílias com pais separados, portanto a esse nível noto diferença nos problemas que as pessoas trazem. Mas no fundo as questões são sempre iguais, e já o eram no séc. XV e penso que no jardim do Éden também», graceja o jesuíta.
Na Comunidade Verbum Dei, a experiência é semelhante. «Sinto que hoje há uma maior consciência do que se passa dentro de nós, e isso foi mudando de há 15 anos para cá. Hoje o que é mais forte são os traumas das vivências familiares, pois foram-lhes dadas menos ferramentas para lidar com as coisas, e custa ter estabilidade emocional para lidar com o mundo interior. Isso vai mudando e hoje é mais difícil ajudar as pessoas a entrar nesse mundo interior, porque há mais distracções. Os jovens, por exemplo, têm muito pouco tempo para estarem com os seus problemas. O grande desafio é aprender a estar dentro de si e gostar de si próprio», sustenta a irmã Paula Jordão.
Apesar de algum desconhecimento geral, outra coisa que os dois entrevistados têm em comum é a falta de tempo para dar resposta a todos os pedidos que lhes chegam. «Eu até pensei duas vezes antes de dar esta entrevista, porque tenho medo do que ai venha», brinca o padre Nuno Tovar de Lemos, que diz que «imensa gente» o procura e a dificuldade maior é a «capacidade de resposta» da congregação. Nos Verbitas é o mesmo. «Neste momento não posso receber mais pessoas, mas se pudesse, com certeza que teria essas pessoas, pois são muitos os que nos procuram», diz a religiosa. É que isto de fazer acompanhamento espiritual não é para todos. «Nem todos os religiosos estão capacitados para o fazer, há que ter uma formação especial e estar consciente do que é acompanhar as pessoas nos seus ritmos de vida», diz. Para dar resposta à procura, os Verbitas estão a formar leigos para fazerem esse acompanhamento, até porque «pessoas casadas podem dar um apoio em certas situações que nós não podemos».
Em termos de frequência, depende de cada pessoa e de cada caso, mas a irmã Paula sugere que «pelo menos uma vez por mês» haja um encontro. «No entanto, pode ser todas as semanas ou períodos em que é todos os dias», adianta.
Para além do acompanhamento individual, os Verbitas têm também grupos de revisão de vida, que fazem o mesmo trabalho, mas numa dinâmica de grupo (ver caixa).
Ter acompanhamento espiritual não implica abandonar outros grupos e movimentos dentro de Igreja, ou sequer a frequência da Eucaristia. «Isto é independente das caminhadas em grupos ou movimentos, mas não retira a importância dos grupos, que dão coisas à pessoa que o acompanhamento não pode dar», avisa o padre Nuno Tovar de Lemos.
O Reencontro com a Fé (Caixa)
O Nuno tem 50 anos e uma vida dedicada à rádio e à Comunicação Social. Apesar da educação cristã e do envolvimento na paróquia e nos escuteiros, o nascimento do primeiro filho resultou num afastamento da Igreja e da comunidade. Anos mais tarde voltaram a aproximar-se também por causa dos filhos, que iniciaram o percurso nos grupos de jovens da Verbum Dei na paróquia do Campo Grande, em Lisboa. Hoje faz acompanhamento num grupo de revisão de vida. «A revisão de vida é feita num grupo pequeno e tendencialmente estável. A revisão é mais individual, com o que é o meu trabalho e a complexidade de uma vida numa sociedade que está em crise. Num pequeno grupo onde as pessoas se conhecem bem, a voz e a experiência de um pode dar pistas para a vida de outro», diz, considerando que «a área espiritual transborda sempre para o resto da nossa vida, na Verbum Dei». Esta é mais uma forma de acompanhamento espiritual que permite um apoio espiritual para todas as áreas da vida do cristão.
Ricardo Perna
Família Cristã