Os Reis Magos
Hoje é dia 2 de Janeiro, estamos no novo ano, na renovação do calendário. O mundo católico continua em festa, no tempo do Natal do Senhor, da Sagrada Família, da Mãe de Deus (ontem, dia 1), dia 6 a Epifania e depois o Baptismo, de Cristo. Amanhã, dia 3, podíamos recordar também o Santíssimo Nome de Jesus. O ciclo do Natal é o tempo de renovação, pela Incarnação do Verbo Divino redentor, antecipado pelo Sim de Maria, na Anunciação do arcanjo Gabriel, a 25 de Março. Na Oitava do Natal começa pois o novo ano, a dia 1 de Janeiro, festa da Circuncisão de Jesus também. O Natal, em síntese, celebra o nascimento de Jesus, o qual terá ocorrido no ano 6 (ou 7) a.C.. Dionísio, o Exíguo, calculou mal o início da Era Cristã, em que estamos no ano de 2015: com efeito, o rei Herodes morreu a 4 a.C., depois do nascimento do Menino. Quanto à data do Natal na Igreja, 25 de Dezembro (leia-se Lucas 2, 4-7), em vigor em Roma já em 336, surgiu para substituir a festa pagã do Solis Invictis (“Sol Invicto”), proclamada pelo imperador Aureliano em 274, celebrada no Solstício de Inverno, nove meses após o Equinócio da Primavera, a 25 de Março, de acordo com o calendário Juliano. O Oriente, “ortodoxo”, celebra porém o Natal como uma “manifestação” do Senhor, uma Epifania (do Grego Epiphaneia, “manifestação”, “aparição”), logo fá-lo a 6 de Janeiro. Esta data, todavia, como já dissemos, no sentido religioso e no calendário litúrgico da Igreja Católica, rememora uma manifestação divina, ou seja, a apresentação de Jesus Cristo ao mundo, celebrada na visita dos Reis Magos com os seus presentes. A Epifania é pois umas das festas mais antigas no Cristianismo, remontando ao séc. IV, celebrada tanto no Oriente como no Ocidente, embora o objecto principal desta festa nas Igrejas do Oriente seja o Baptismo do Senhor, o qual na Igreja Católica se celebra como solenidade normalmente no Domingo que encerra o ciclo do Natal.
Neste contexto do tempo do Natal, então, eis que estão à porta os Reis Magos, do Oriente, que «ao ver a estrela, sentiram imensa alegria; e, entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, adoraram-no; e, abrindo os cofres, ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra». Assim nos fala Mateus (2, 1-12) sobre esses Magos do Oriente, a quem a tradição chama pelos nomes de Gaspar, Belchior e Baltasar, os quais ofereceram ao Menino: ouro (porque Ele é Rei), incenso (símbolo da fé, por ser Deus) e mirra (por se tornar homem e vir a morrer). Mateus não diz quantos eram, nem os nomeia sequer, como também as Escrituras não mais os referem para além deste capítulo do seu evangelho. Refira-se que esta narrativa de Mateus é didascálica, ou seja, um “midrash”, uma construção literária pensada para proporcionar um ensinamento. Mateus, na referência aos Reis Magos, revisita também o Salmo 72, 10-11, por exemplo, que assim prenuncia: «Os reis de Társis e das ilhas oferecerão tributos, / os reis de Sabá e de Seba trarão suas ofertas. / Todos os reis se prostrarão diante dele, / todas as nações o servirão».
A tradição popular cristã “criou” os Reis Magos, primeiro como “os três sábios” ou “três reis”. Deu-lhes nomes, embora várias versões designassem entre dois e doze (entre os cristãos arménios) o número dos Magos. Talvez o número de três radique no facto de que eram três os presentes. A primeira referência ao número de três aparece em Orígenes, autor eclesiástico do séc. IV. Foi o Papa Leão I Magno, no séc. V, quem estabeleceu oficialmente o número de 3 para toda a Cristandade. No século seguinte, inscrevem-se os nomes dos Magos na basílica de S. Apolinário Novo em Ravena, Itália: Melchior, Gaspar e Baltasar, equivalendo em Grego a “Appelikon”, “Amerin” e “Damaskon”, ou em Hebraico a “Magalath”, “Serakin” e “Galgalath”. A Igreja da Etiópia chama-lhes “Hor”, “Basanater” e “Karsudan”. Os cristãos da Síria chamam-lhes “Larvandad”, “Hormisdas” e “Gushnasaph”, termos de origem persa. Melchior (ou Belchior), nome de origem persa, significa “rei da luz”; Baltasar deriva do Assírio “Bel sar uxur”, do Hebraico “Belsassar”, (Beltshatztzár), do Babilónico “Balt-shar-usur”, que significam “salve a vida do Rei” (ou “senhor”, de “Ba’al”, “deus”). Gaspar pode vir do Persa “Jasper” (de onde vem o termo… “dióspiro”), “Senhor [ou “portador”] do Tesouro”, em Latim “Gazabar”.
O tempo criaria a tradição que chega aos nossos dias, definindo logo no início o pressuposto de que provinham de povos “pagãos” das cercanias do Médio Oriente, qual prefiguração das futuras nações que seriam convertidas pela fé cristã. A palavra “mago” provém do Elamita “ma-ku-ish-ti”, que passando para Persa deu “ma-gu-u-sha” e para Acádio “ma-gu-shu”, chegando ao Grego como μαγός (magós, plural: μαγοι, magoi), e daí ao Latim “magus” (plural magi – ler mágui), de onde provém a nossa palavra “Mago”. Era um título que se referia especificamente aos sacerdotes do Mazdaísmo, fenómeno religioso persa centrado no profeta Zoroastro e, por isso, também chamado de Zoroastrismo. O seu símbolo é o fogo. Como diria Ludolfo da Saxónia, na sua célebre “Vita Christi” (o primeiro grande best-seller da história da imprensa de Guttenberg, embora a obra tenha sido escrita em 1378), eram chamados de magos não pelas suas artes mágicas, mas antes pelas suas competências em matéria de Astrologia. Os magos eram para os persas o mesmo que eram os scribi para os judeus, os filósofos para os gregos ou os savi (sábios) para os latinos. Daí a sua conotação com “sábios”, não com as artes ocultas. Algumas versões da Bíblia falam em “feiticeiros” ou simplesmente “sábios”, mas o termo Magos, das traduções bíblicas, a partir do Grego portanto, foi o que vingou. Os magos para os gregos eram conotados, como refere Heródoto, com a aristocracia da Média (dos Medos, na Pérsia, antepassados dos Curdos), dedicados à Astronomia, à interpretação dos sonhos, praticavam o Mazdaísmo. Logo aqui se pode vislumbrar a base da tradição dos três Reis. Do Oriente, que visitaram Jesus… Seguindo uma estrela… Também foram designados como “magos” por Orígenes, Justino, Agostinho de Hipona ou Jerónimo.
Uma descrição dos Reis Magos seria feita por Beda, o Venerável (673-735), que no seu tratado “Excerpta et Colletanea” assim relata: «Melquior era velho de setenta anos, de cabelos e barbas brancas, tendo partido de Ur, terra dos Caldeus [actual Iraque]. Gaspar era moço, de vinte anos, robusto e partira de uma distante região montanhosa, perto do Mar Cáspio [Norte do Irão]. E Baltasar era mouro, de barba cerrada e com quarenta anos, partira do Golfo Pérsico, na Arábia Feliz [a norte do Iémen, com forte presença de comunidades de origem africana]».
Beda o Venerável considera-os pela primeira vez como representantes da Europa, Ásia e África. Os nomes dos magos só surgem nessa época também. Nas mais antigas representações os Reis Magos apareciam com mitras, mas mais tarde coroados como reis, porventura com base no referido Salmo 72,10 e em Isaías 60,6. Certas tradições esotéricas dão-nos como oriundos das terras do Preste João, a Etiópia actual. O conceito geográfico Oriente em Mateus pode designar uma abrangência ampla e ambígua, pode ser o Irão (Pérsia), a Mesopotâmia, para lá destas regiões até, ou estender-se pela Arábia. Ou incluir todos os povos que usavam o dromedário (camelo de uma bossa) como meio de transporte, seguindo estrelas, rumando no sentido do movimento diurno do Sol, para Oeste. Mas conhecedores de profecias antigas, dos textos e oráculos, num misto de ciência, religião e natureza.
Os Magos do Oriente vieram atrás de uma estrela, chamada de Belém, porque para lá os guiou. Antes, todavia, pararam em Jerusalém, onde foram recebidos pelo rei Herodes o Grande, secretamente. Este, a quem os rabinos e sábios judeus lhe indicaram Belém como local do nascimento, de acordo com as profecias, antes de lhes dar caminho, pediu-lhes o rei que no seu regresso lhe viessem dar informações sobre o Menino Rei, pois também o queria adorar. Subterfúgio cruel, pois era a morte que Lhe queria dar. Mas avisados em sonhos (por um anjo, reza a tradição) do perigo que Jesus corria, depois de visitarem e adorarem o Menino (depois deste ter sido apresentado ao Templo e circuncidado), não mais os Três Reis rumaram a Jerusalém, tomando outro caminho. S. Mateus nada mais diz sobre eles. A tradição, muitas vezes apoiada nos Apócrifos, dá-lhes vários destinos, como Sabá (algures entre a Etiópia, Djibuti e Iémen), onde S. Tomás, de acordo também com S. João Crisóstomo, depois da ressurreição de Jesus, os encontrou. Ali foram baptizados e sagrados bispos. Terão sido martirizados no ano de 70, sendo sepultados no mesmo sarcófago, que seria descoberto por S. Helena, mãe de Constantino, que os trasladou para Constantinopla, no séc. IV. No séc. XII, Frederico I Barba-Roxa, transportaria o sarcófago para uma igreja em Colónia, onde ainda hoje repousam os Reis Magos, com as suas pretensas coroas. Essa igreja, dada a imediata afluência de milhares de peregrinos em demanda das relíquias dos Magos, foi depois transformada na catedral de Colónia, começada a construir em 1248, durante 600 anos…
«Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo». Assim o diz Mateus pela boca dos Magos. Que estrela? A do pinheiro de Natal? Sim, essa. Mas que estrela é essa, tão profética? A estrela de Belém, uma conjunção de Júpiter e Saturno, um cometa ou uma supernova, seja o que for, mesmo a Estrela da Profecia, como a designou Flávio Josefo (a Diocleciano, seu mecenas), é o símbolo dos Magos, o seu atributo geral, a par do específico de cada um (os presentes), com constante presença na iconografia, logo na arte. Em 1614, refira-se, o astrónomo alemão Kepler estabeleceu que em Março, Outubro e Dezembro do ano 7 a.C., os planetas Júpiter e Saturno acharam-se alinhados na constelação de Peixes, um fenómeno visível a olho nu, mas detectável, claro, apenas por conhecedores ou cientistas. Foi por isso que Herodes interrogou os Magos em relação à estrela e como sabiam dela, para onde os guiava, pois sabia que eles eram astrónomos. Indicou-lhes sim, com base no livro de Miqueias, que fossem a Belém. Aliás, a estrela ia adiante dos Magos e logo percebem que era em Belém que estava o Salvador. É assim que profetiza Miqueias (5, 1): «Mas tu, Belém-Efrata, tão pequena entre as famílias de Judá, / é de ti que me há-de sair / aquele que governará em Israel». A Estrela de Belém foi sendo vista, deste modo, como a confirmação da Profecia da Estrela, um dos oráculos de Balaão – com forte carga messiânica – no Livro dos Números 24, 17, «Eu o vejo, porém não agora / Eu o contemplo, porém não de perto. / De Jacob nascerá uma estrela / E de Israel se levantará um ceptro (…)». Primeiro Flávio Josefo, como já vimos, depois Orígenes, relacionaram o texto dos Números com a Estrela dos Magos, “via Miqueias”, compondo a tradição o resto. S. João Crisóstomo viu na Estrela algo puramente milagroso, enquanto que Orígenes, como outros autores, viam algo mais naturalístico. Por isso talvez, o Oriente ortodoxo concebe o fenómeno como um evento milagroso, sobrenatural, enquanto a Igreja de Roma admitiu, sem problemas, a possibilidade de um acontecimento de natureza astronómica. A Estrela de Belém é importante, como mais uma das referências à importância da luz na fé e na simbólica cristãs, a luz que guia, que alumia, aquece e significa a presença do Espírito, que purifica, a marca de Deus, a ideia do “céu”. Mais do que um acontecimento astronómico excepcional, de um cometa ou uma supernova, de qualquer conjunção planetária, é um dos símbolos do caminho a fazer, da luz que guia. História ou lenda, ou legenda, estes Reis do Oriente, magos ou sábios, sacerdotes, o que fossem, esta narrativa representa todos aqueles que reconhecem no Cristo recém-nascido a nova luz da esperança universal, seguindo antigas profecias, ultrapassando montes, desertos, calor, frio, a noite e o dia, trilhando caminhos para ver e adorar o Salvador, animados pelo fogo divino da esperança.
Se foram astrónomos, adivinhos, magos, sacerdotes, se não eram reis, provavelmente essa discussão será a que menos sentido tem, embora não se possa provar seguramente qualquer interpretação. Só houve um rei mago na história, na Pérsia antiga, um usurpador do trono de Cambises II, mas em nada interessará nesta tradição calorosa, afectiva e universalista dos Reis Magos que visitaram o Menino, de acordo com Mateus, por mais que este não tenha revelado pormenores. Mas a Bíblia não é um texto académico, uma tese científica estribada em bibliografia e notas de rodapé, mas antes um texto de inspiração divina e com uma linguagem e sentido que é necessário ler e reler, interpretar através de sinais, metáforas e narrativas simbólicas, criadoras imagens espirituais de fé e esperança.
O acontecimento histórico, ou lendário, da visita dos Magos, guiados pela Estrela, a Belém, tem um valor diferente. Prenuncia, como já aludimos, a salvação que abrange de igual modo os pagãos ou gentios. Revela também a humildade dos reis perante o grande Rei vindo ao mundo, ou a submissão do profano ao divino. Dentro da dimensão midráshica da narrativa de Mateus, de criação de um texto filtrando várias tradições literárias similares conhecidas na época, os Magos são aqueles que vieram de longe, representando que longe estão, os “estrangeiros”, que sempre foram considerados estranhos ou alvo de suspeição em quase todos os povos até ao Renascimento. Os Magos, “gentios”, são os estrangeiros desconhecedores da cultura do local e de quem visitam (a judaica, naquela caso), mas que humildes se prostram diante da mesma e a respeitam, a contemplam e lhe dão o seu melhor, regressando às suas terras mais ricos espiritual e culturalmente. Mas representando a alteridade, a universalidade. Sem nunca perderem a sua condição e valor, de reis, ou não, no caso, pois foram, na história da Salvação, a primeira autoridade religiosa e civil a adorar e homenagear Cristo. Uma história que se repete… ou não, infelizmente.
Vítor Teixeira
vteixeira@porto.ucp.pt
Universidade Católica Portuguesa