A lança que perfurou Cristo fez brotar os Sacramentos
Com um golpe de lança, o Filho de Deus foi declarado morto. Diz a tradição que naquele momento houve uma cura milagrosa no soldado que se converteu e se tornou discípulo. A lança, declarada santa, viajou de Jerusalém para Istambul, Roma, Paris, Nuremberga e Viena. Passou pelas mãos de santos e pecadores. E tem sido cobiçada ao longo da História por causa do mito de quem a possuir tem nas mãos o destino do mundo.
Narra-nos o evangelista São João que depois da crucificação os soldados «aproximaram-se de Jesus. Vendo que já estava morto não Lhe quebraram as pernas, mas um soldado atravessou-Lhe o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água» (Jo., 19,33-34).
Ainda que os Evangelhos não indiquem o nome deste soldado, a fonte mais antiga, mas não canónica, que se conhece, o Evangelho de Nicodemos, atesta que se chamava Longino. Pela colectânea da vida de santos Legenda Áurea, de Jacopo Varezze, ficamos a saber que este soldado sofria de problemas de visão, e no momento do golpe, o sangue e a água que brotaram de Cristo terão respingado os seus olhos e ele passou a ver melhor, física e espiritualmente. A partir daquele momento terá deixado a carreira militar, recebeu catequese dos Apóstolos e foi pregar o Evangelho para Cesareia da Capadócia, onde permaneceu durante 38 anos até ao seu martírio. Em Portugal e no Brasil é conhecido e venerado também com o nome de São Longuinho.
E qual foi o paradeiro da lança, o instrumento com que foi atestada a morte de Jesus? Seguindo as palavras de Santo Antonino de Piacenza sobre a sua peregrinação à Terra Santa, por volta de 570, ele afirmou ter venerado «a Coroa de Espinhos com que Nosso Senhor foi coroado e a lança com que o seu lado foi ferido» na Basílica do Monte Siso, em Jerusalém. O que leva a acreditar que Longino terá entregado a lança à comunidade de Jerusalém antes de ir em missão, e séculos mais tarde ficou na posse do imperador Constantino. Documentos do mundo bizantino, escritos no Século VII, afirmam que a ponta da lança não estava intacta (do eixo ou bastão da lança já não se falava), mas partida em duas partes. E quando Jerusalém foi saqueada pelos persas, em 614, uma pequena parte da ponta da lança (que continha o sangue de Cristo) foi oferecida ao primo do imperador Heráclito, levada para Constantinopla e guardada na Hagia Sophia. Em 1244, o último imperador latino de Constantinopla, Balduíno II, terá cedido esta e outras relíquias ao rei Luís IX de França para pagar as suas dívidas avultadas. Esta terá sido levada para a Sainte-Chapelle, em Paris, mas desde a Revolução Francesa que não se sabe do seu paradeiro. A outra parte desta relíquia terá sido levada de Jerusalém para a capital bizantina no Século IV, onde aí permaneceu durante séculos até à conquista de Constantinopla pelo Império Otomano, em 1453, altura em que o sultão Bajazet II a terá enviado ao Papa Inocéncio VIII como resgate para a libertação do seu irmão Zizim. Comprovada a sua autenticidade, esta foi guardada na igreja de Santa Maria do Povo, em Roma, e levada em 1629 para a Basílica de São Pedro (aquando da sua consagração) para ser depositada numa das quatro capelas dentro dos pilares que sustentam a cúpula da basílica, identificada com a estátua de São Longino, feita por Bernini. Mais tarde a relíquia foi levada para a capela da Verónica, que acolhe não só o véu com o rosto de Jesus mas também um fragmento da Santa Cruz. Durante a Segunda Guerra Mundial, esta teria sido guardada nos aposentos papais, mas depois teria voltado para o mesmo lugar.
Outra lenda relacionada com esta relíquia está ligada à chamada lança de São Maurício, o soldado romano venerado como primeiro cavaleiro cristão que morreu massacrado juntamente com a Legião Tebana no Século III. Como recebeu a lança de São Longino não se sabe, mas é dado como certo que esta lança da Paixão teria chegado às mãos do imperador Constantino, que a reforjou incluindo-lhe um dos pregos da Paixão de Cristo. Desde a Idade Média que esta lança preservada em Nuremberga (Alemanha) era considerada a lança de São Longino. A partir de 1273, diz-nos Carlos Evaristo e Fabio Tucci Farah na obra Relíquias Sagradas, “essa lança foi transformada numa das insígnias do Sacro Império Romano-Germânico. Coroado pelo Papa Clemente VI, Carlos IV (1316-1328) fez questão de alardear a sua natureza sagrada, revestindo-a com a capa dourada e a inscrição: Lancea et Clavus Domini”. Séculos mais tarde, durante as invasões francesas, para evitar que Napoleão Bonaparte se apoderasse de tão preciosa relíquia, a Câmara de Nuremberga terá pedido ao barão Von Hugel que levasse a lança para um esconderijo em Viena para depois a devolver, mas este não cumpriu o combinado e acabou por vender a lança à família Habsburgo. Anos mais tarde, Adolfo Hitler, arrebatado pelo mito de que quem possuísse esta lança teria o destino do mundo nas suas mãos, consegue apoderar-se dela. Porém, face à sua derrota, o exército americano consegue resgatar esta relíquia a 30 de Abril de 1945, no mesmo dia em que Hitler punha fim à sua vida. A 7 de Janeiro de 1946 esta lança regressa à Áustria, e ainda hoje ela pode ser vista numa das colecções do Palácio Imperial de Hofburg, em Viena.
Existe ainda uma lenda sobre a chamada lança da Arménia, guardada no mosteiro Keghartavank, que após a ocupação russa, em 1928, terá sido levada para a catedral de Echmiadzin. Mas a maior parte dos estudiosos não considera esta relíquia como parte da original lança que trespassou o corpo de Cristo.
À parte a história ligada a esta relíquia, o mais importante é o que por causa dela brotou de Cristo: sangue e água. O sangue remete para o dom de Si que Cristo fez através da sua Paixão e morte. A água remete para o dom do Espírito Santo que gera a fé. E desde cedo que os Padres da Igreja interpretaram simbolicamente que deste sangue e desta água brotaram os Sacramentos da Igreja, especialmente a Eucaristia e o Baptismo (porta de entrada e alimento da vida cristã).
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A Santa Lança noutros lugares
Na Idade Média houve uma grande multiplicação e descoberta de várias relíquias resultantes de partes das relíquias originais ou do contacto com as mesmas. Este é o caso de relíquias ligadas à Santa Lança que hoje se podem ver no Museu da Catedral de Cracóvia (Polónia), no Museu Diocesano de Ancona (Itália) e na igreja católica do Santíssimo Rosário em Alsancak-Esmirna (Turquia).
JOSÉ CARLOS NUNES
Director da Família Cristã