Memórias de muitas Páscoas

VATICANO E O MUNDO

Memórias de muitas Páscoas

Recrio aqui um sino de igreja e ouço-o realmente. Recrio aqui a minha igreja e vejo-a realmente. Revejo as faces dos sacerdotes, nos seus paramentos cor de púrpura. E o altar antigo. E o sacrário ao fundo, ao alto. Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, do povo. A minha igreja. Em Benguela, Angola.

Todas as plantas têm um chão e os homens são como as plantas. As suas raízes alimentam-se da terra fecunda – da memória e imaginação.

É a Semana Santa. É o apelo à oração. E a ele respondo porque para mim faz sentido. Mais uma Páscoa, herdeira de todas as Páscoas que pontuaram a minha vida. Quem ultrapassou o cabo dos setenta adquire uma espécie de direito natural da memória, a que só imponho, no meu caso e como condição de partilha, o ser útil (ou talvez divertido…) a quem me ler.

Sem nostalgia excessiva, espero. Antes, como quem vai experimentando os lugares e fruindo a presença dos amigos vagarosamente, com outra satisfação íntima, nas tardes serenas que ainda restam, passados os sóis ardentes de viver freneticamente, desesperadamente.

E faço-o vagarosamente, repito, como quem conversa, porque gosto imenso de conversar.

UM SEGUNDO NATAL

A Páscoa, há muitas décadas era, para a criança que em mim habitava e segundo a ordem das festividades, uma espécie de “segundo Natal”.

As prendas não eram tão sedutoras (os ovos, os chocolates), os “pais natais” não estavam disponíveis, os presépios estavam guardados, mas havia sempre no ar como que um sentimento difuso de antecipação, pois algo de importante ia acontecer. E era o milagre da Páscoa!

Essa antecipação passou a acentuar-se desde que fiz a Primeira Comunhão e comecei a aprofundar o mistério de Deus feito homem.

Impressionou-me sempre muito a prodigiosa imaginação de Deus. Como esse projecto extraordinário de ir habitar num ventre de mulher e de se forjar uma identidade humana, para nos reensinar a viver!

Há quem, descrente, diga que se trata antes da prodigiosa imaginação do homem, ao inventar minuciosamente um Deus, com todos os atributos para satisfazer as necessidades, as fragilidades humanas.

Conheço os termos da discussão, creiam, mas não me interessa prossegui-la aqui. Pois tenho o direito de conversar como muito bem entendo e com quem entendo.

Volto pois a Deus como o deseja, o vê (o antecipa!) a minha Fé, crescendo no ventre materno, fruto de uma biologia divina e humana, ditada por Quem criou tudo e portanto a Biologia.

À impossibilidade humana de reescrever as regras com que o mundo e a vida foram criados, Deus faz isso mesmo, Ele o Criador. Suspende por tempo breve a ordem do mundo. Transgride as suas próprias leis. E, num rasgo de divino artista, começa por se implantar como semente, esperar nove meses até nascer menino, e viver trinta anos como um homem normal… confundindo-se com a palavra que nos salvaria a nós – e o condenaria a Ele.

E a Páscoa era e é o clímax dessa história tão densa, humana e divina ao mesmo tempo. Porque há a Ressurreição, esse último desafio à seriedade dos cientistas e à monotonia quotidiana dos laboratórios.

Ressuscitar dos mortos? Sim, mas com um atraso de três dias a quem zombava dele. «Salva-te a ti mesmo, desce dessa cruz!».

Outros o desceram, mas Quem se ergueu foi Ele, e os discípulos acreditaram e deram testemunho, até aos nossos dias.

ANTES, A QUARESMA

Os crepes roxos da Quaresma, naquele tempo, acentuando, dentro das igrejas, o nosso luto do quotidiano. Jesus ia sofrer. Jesus ia ser condenado. E depois sujeito à ignomínia da cruz.

A “condenação do inocente” foi sempre para mim como que uma tela sombria, um quadro espasmódico, a simbolizar, em cores escuras, a personificação do absurdo.

Como se pode punir quem não praticou o mal?, perguntava-me eu, na indignação inocente de quem ainda não conhecia o mundo e as suas perfídias?

O pseudo-julgamento de Jesus é uma charada, revoltante em si mesma, uma espécie de sinistra peça de teatro que acaba definhando-se a luz de cena, a realçar no fim de tudo a brancura do cordeiro imolado.

Jesus nasce salvando, pois nos reabre os horizontes de uma eternidade perdida. E Jesus morre perdiando e salvando não só os seus algozes como o bom ladrão, para quem uma palavra apenas de comiseração para com Jesus o Sofredor constituiu chave bastante de libertação.

E Jesus ressuscitou. E a revolução definitiva consumou-se. E nada será como dantes. Reabriram-se para todos nós as portas de Jerusalém.

A MINHA JERUSALÉM

As minhas muitas Páscoas culminaram, há alguns anos atrás, com a minha única ida a Jerusalém. Foi próximo da Páscoa, sem ser exactamente na Páscoa. E no meio de um grupo de turistas, mais ou menos agnósticos, mais ou menos ateus, que faziam gala em visitar a Cidade Santa por razões culturais, não religiosas. Não iam em peregrinação, desafiaram-me. E disse-lhes simplesmente que eu ia…

E foi a minha Páscoa possível. A do Jardim das Oliveiras, a da Via-Sacra e a do Santo Sepulcro.

Ali imaginei os últimos dias, as últimas horas de Jesus, numa cidade largamente indiferente, imaginei eu, ao drama do Calvário.

E Jerusalém foi inevitavelmente um banho de imersão em séculos e séculos de multi-religiosidade, de cosmopolitismo lado a lado com a mais estrita tradição rabínica, mais o apelo à oração da mesquita próxima.

O meu olhar inquieto antevê todas as Páscoas nesta Jerusalém da segunda década do século XXI.

Que futuro para a Cidade Santa? Que futuro para o povo eleito do Antigo Testamento? Que futuro para nós, o povo dos gentios a quem toda a verdade foi revelada, doravante um povo eleito de dimensão planetária?

A esta Páscoa muitas outras lhe sucederão no decurso do tempo.

Para mim, aqui fica, neste caleidoscópio de imagens e sensações, o testemunho das minhas muitas Páscoas, num quadro-síntese do que o meu espírito seleccionou do drama e da sua libertação.

Carlos Frota

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