Partir para qualquer lugar…
Leio que o Papa Francisco e o Presidente-eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, mantiveram um breve contacto telefónico há dias, tendo o Santo Padre saudado o vencedor do pleito eleitoral americano, desejando-lhe os melhores votos na sua espinhosa missão.
Os melhores votos… e as orações do Pontífice para a sua missão hercúlea de reerguer um país devastado pela crise da pandemia e não só: sobretudo pela profunda crise identitária dos últimos anos, acrescentaria.
As circunstâncias extraordinárias do mandato presidencial prestes a terminar – e do modo como decorreu o período imediatamente anterior ao acto eleitoral – motivaram as reflexões seguintes.
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A antiga sabedoria o diz, em todas as civilizações. A vida é feita de sucessivas chegadas e partidas. Nada é definitivo, tudo é transitório. Desde as situações materiais de conforto e de sucesso que podem evoluir para o seu oposto, como as de perfeita saúde que de repente se convertem em pesadelo, ou a perda de entes queridos – os pais, por exemplo, quando se é jovem – e cujo afecto tínhamos como pilar da nossa própria estabilidade emocional e chão em que se edificava a nossa autoconfiança.
As despedidas para sempre angustiam, assim como as perdas súbitas de “estatuto”, provenientes de má fortuna, o outro nome da adversidade.
Educar os mais novos para tudo o que a vida pode trazer, de bom e de mau, constitui regra de ouro. Essa e outra que lhe está associada e é igualmente universal. O do recurso ao divino, quando se sabe (e sabe-se quase sempre) que à capacidade humana outra se sobrepõe e é infinitamente superior.
O PODER E AS SUAS MIRAGENS
Há duas realidades que qualquer aluno novato de Ciência Política aprende, logo na primeira abordagem da sua nova área de estudos. Uma é naturalmente o poder e as virtualidades que encerra, de influenciar as vidas de quem o exerce e de quem a ele se tem que submeter. Outra, mais insidiosa, é a volatilidade do poder, isto é, a fácil susceptibilidade da sua perda, quando quem o possui sucumbe a uma das várias circunstâncias que levam à sua transferência para outrem.
É-se poderoso um dia, por via da fortuna pessoal ou da política, ou de ambos, e no dia seguinte já não se é, passando-se sem transição dos esplendores da fama à penosa obscuridade do anonimato, da irrelevância, da indiferença e mesmo do desdém, de quem bajulava antes.
Fica-se então privado dos atributos materiais e imateriais do poder. Desde “o palácio”, em todas as suas formas, que simboliza a riqueza financeira, até ao pseudo respeito dos outros que representa o seu efémero reconhecimento do poder… do poderoso.
A LONGA NARRATIVA BÍBLICA
Também qualquer aluno de estudos bíblicos, ou mais simplesmente, qualquer cristão não distraído, tem muito cedo a noção de que a vida e a morte de Jesus são o rematar de uma longa reflexão sobre o poder, vinda do Antigo Testamento, nas suas duas formas radicalmente opostas: o poder divino que não perece nunca; e todas as formas de poder humano que trazem ínsita a marca do caduco, do transitório.
O Livro de Job é ilustrativo, a muitos títulos, da realidade efémera do poder, sendo fascinante a leitura de como o protagonista não passa de um mero peão no grande jogo do Bem e do Mal. Mas, mais importante, de como não perde nunca de vista a diferença fundamental entre o “ser” e o “ter”. Porque não esquece a sua origem e o seu destino.
UMA FICÇÃO AMERICANA
Devo confessar que um dos fascínios que tem para mim a leitura permanente do que vai acontecendo pelo mundo, é que a realidade objectiva não é nunca apenas um inventário frio do que acontece. Desde logo porque o seu protagonista é o homem, em toda a sua humanidade. E daí a realidade ser também, se me posso exprimir assim, uma grande contadora de estórias, como gostam de escrever os literatos.
A política, a diplomacia, a economia, as artes, as religiões, as ciências, as técnicas, todos esses vastos domínios nos contam estórias de pessoas concretas, vindas de quotidianos comuns. São elas que dão corpo às ideias, às teorias, aos grandes avanços e aos grandes recuos da História.
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Um amigo meu contava-me há muitos anos que o pai, advogado de sucesso, para além da literatura técnica relacionada com a sua profissão, só quase lia biografias. E quando ele me contou isso, compreendi de imediato o ponto de vista. Aquele que acima referi. Olhar o que acontece não através do óculo muitas vezes enganador da abstracção, mas da vida concreta dos pequenos artífices do mundo que somos todos nós.
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A América escreve diariamente, nos últimos quatros anos, uma dessas extraordinárias obras de ficção que, ainda não terminada, se há-de “comprar” dentro em breve sob a forma de livro, de muitos livros, biografias (não) autorizadas do homem que ainda exerce as mais altas responsabilidades do País. Para não falar já de uma eventual autobiografia que, pelo previsível excesso no exercício de auto-glorificação (o nosso herói não é conhecido exactamente pela modéstia com que trata a sua pessoa), ficará melhor colocada numa secção de livros de humor, em qualquer biblioteca bem organizada.
Esculpida na pedra fria dos negócios mais ou menos bem sucedidos, a estátua em corpo inteiro do personagem nunca reproduzirá fielmente o que define o homem, ao vivo: o seu insaciável apetite de poder, não para servir objectivos altruísticos, mas para alimentar a cada momento um ego insaciável.
PARTIR PARA QUALQUER LUGAR…
Como se sabe, o ainda Presidente americano vive desde há dias uma dessas circunstâncias da volatilidade do poder, porque segundo as conhecidas regras do sistema político do seu país teve menos votos no Colégio Eleitoral que há de confirmar o seu adversário na posição que é ainda a sua, a partir de 20 de Janeiro do próximo ano, quer dizer, daqui a dois meses, praticamente.
O derrotado teima em não aceitar a realidade e fugiu, desde a noite eleitoral, para o mundo de fantasia que há muito preparou para si, o do vencedor enganado, vítima de não sei que conspiração, das muitas que parte não negligenciável do seu eleitorado lhe foi servindo a intervalos regulares, confirmando-o sempre na missão messiânica de salvar o mundo, mesmo e sobretudo contra a vontade do mundo.
A DOR INSUPORTÁVEL DA DERROTA
Dizem os psicólogos que Trump não consegue aceitar a derrota, fruto de uma educação em que o pai implacável era uma espécie de juiz supremo, mas destituído de misericórdia palidamente semelhante à do Juiz Último em quem confiamos.
Código implacável, esse, o de um pai que se julgava o rei do universo! E que transmitiu ao filho um particular decálogo de insensibilidade humana, todo orientado para as vitórias passageiras da vida.
Mas vitórias com iate, apartamento de luxo e avião particular! De que serve tudo isso?
Volto à reflexão sobre o poder, inspirada pela vida de Jesus. O seu carro de luxo foram as sandálias poeirentas com que calcorreou os caminhos da Terra Santa. E dispensou o avião para regressar à casa do Pai!
Ridícula ou despropositada a comparação? Bem… talvez. Mas quem corajosamente me leu até aqui sabe o que quero dizer.
Carlos Frota