Um Santo rapioqueiro
A cidade de Aveiro é conhecida pelos ovos moles, pelos moliceiros e cada vez mais pela sua Ria, que “abre os braços” a todos os que a querem conhecer melhor. Mas, na minha opinião, se querem conhecer a Veneza Portuguesa em todo o seu esplendor e viver fortemente as suas tradições centenárias, visitem-na durante os festejos de São Gonçalinho. A Festa da Chuva das Cavacas!
O “nosso menino”, como carinhosamente é apelidado pelas gentes do bairro mais carismático de Aveiro, o Bairro da Beira Mar – onde se encontra a capela a ele dedicada –, é anualmente celebrado em Janeiro. Este ano as festas ainda decorreram com normalidade, mas em 2021, de acordo com um comunicado a que tivemos acesso, as condições serão outras. Os festejos estão marcados para o período entre 8 e 11 de Janeiro, cabendo a sua organização à Mordomia de São Gonçalinho e à Paróquia da Vera Cruz. A nível religioso poucas alterações haverá, até porque a Capela de São Gonçalinho é já por si muito pequena.
Infelizmente, o mais aguardado momento, o lançamento das cavacas pelos pagadores de promessas do telhado do templo, foi cancelado!
A capelinha actual, como é conhecida pelos seus devotos, data de 1714 mas as referências a uma ermida dedicada a este santo dominicano começam no Século XVII. A nível arquitectónico nada traz de novo e segue uma linha hexagonal muito em voga na época da sua construção; é uma edificação em alvenaria com aplicação de cantarias, em calcário, elementos estruturais e de cariz ornamental. As grandes dimensões dos janelões foi propositada para compensar as exíguas dimensões da capela, permitindo assim que pessoas no exterior possam acompanhar as celebrações que ocorrem no seu interior, especialmente em dias de festa. Este local de culto não é apenas uma peça de arquitectura representativa de uma época, mas também um elemento activo na relação com a dinâmica do espaço envolvente. Daí a classificação como Imóvel de Interesse Público.
São Gonçalinho será, muito provavelmente, o santo português com mais devotos, depois do Santo António de Lisboa. Tal pode ser comprovado em Aveiro com muita facilidade, especialmente em Janeiro durante os dias da Festa.
De origem portuguesa, São Gonçalo terá vivido nos Séculos XII e XIII. Pensa-se que nasceu a 1190, em Tagilde, perto de Vizela, vindo a falecer em Amarante; por isso também é conhecido como São Gonçalo de Amarante. Sabe-se que frequentou a escola arquiepiscopal de Braga, sendo considerado beato pela Igreja Católica. Duas décadas depois de ter falecido foi edificada uma igreja em Amarante em sua honra, a 10 de Janeiro de 1259. O mais antigo documento com referências a São Gonçalo é um testamento de 18 de Maio de 1279, que lega bens à igreja de São Gonçalo de Amarante.
São Gonçalinho de Aveiro, nome carinhoso pelo qual é conhecido, surgirá neste contexto, acrescido pelas virtudes e atributos de santo casamenteiro e protector de doenças ósseas e das gentes da Beira Mar – o tal bairro que se estende sobranceiro à capela.
São Gonçalinho terá vivido em Aveiro, onde conquistou a fé dos habitantes do Bairro da Beira Mar, que a ele entregavam a sua sorte quando saíam para o mar. O seu rosto, jovem e risonho, fizeram dele o eterno “menino”, embora tenha fama de em vida ter sido um bom rapioqueiro (pândego) e brincalhão, além de outras características que ajudaram a todo o culto.
A Capela de São Gonçalinho merece uma visita e é bem fácil de encontrar depois de se chegar ao famoso antigo Mercado do Peixe, coração turístico da Aveiro actual, ali bem ao lado do Jardim do Rossio e dos cais, onde se pode aproveitar para fazer um passeio de moliceiro pelos canais da Ria.
Em seu redor pode-se encontrar os mais variados restaurantes, que servem a típica culinária de Aveiro: as enguias, as caldeiradas, os ovos moles e outra doçaria – receitas que fizeram desta cidade uma das mais doces de Portugal.
Na ermida da capela podemos também apreciar um excelente exemplo de calçada à portuguesa e uma estátua evocativa de São Conçalinho feita em pedra, com mais de dois metros de altura. Da autoria do mestre cantoneiro Paulo Neves em 1959, foi encomendada para celebrar os três séculos da construção da capela naquele local.
A história de São Gonçalo de Amarante é pouco consensual, mas resumidamente sabe-se que foi em peregrinação à Terra Santa e que regressou catorze anos depois, tendo logo ingressado na Ordem Dominicana. A beatificação ocorreu três séculos após a sua morte, a 16 de Setembro de 1561. Já o processo de canonização nunca se chegou a realizar, o que não impediu que a religiosidade popular o tornasse num dos mais importantes exemplos de culto e devoção da História de Portugal.
Convido assim os leitores a visitarem esta linda capela, despedindo-me respeitosamente com saudações rapioqueiras, como sempre fazem questão de referir os mordomos deste beato.
João Santos Gomes